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Aqui Wilson Côelho – O imaginário de um envenenado

Autor do texto reflete sobre teatro atual, revendo Moliére em festival de teatro na Argentina.

 

Mostrar um espetáculo de Molière nestes tempos atuais nos parece bastante oportuno, tendo em conta as relações que a sociedade estabelece com o poder, desde o ponto de vista dos governos até as questões pessoais, passando pela hipocrisia, o engano, a traição e muitos outros comportamentos que transformaram a realidade numa grande tragicomédia.

Mas muito mais interessante é a possibilidade de trazer todos estes temas colocando o próprio Molière, pseudônimo de Jean-Baptiste Poquelin, como o xis da questão: o criador e a criatura como o centro da ação dramática.

Assim se pode compreender o “Molière envenenado”, monólogo escrito e interpretado por Héctor Rodriguez Brussa (acima), com direção de María de las Victórias Garibaldi e montagem do grupo argentino Teatro Poquelin.

Nesse exercício de criação, Héctor Rodriguez Brussa apresenta Molière numa espécie de duelo dialogal, uma luta desde o camarim até as coxias, com seus personagens Tartufo, Orgon, Madelon e Lully.

Sem esquecer que Héctor Rodriguez Brussa, de certa forma, interpreta a si mesmo, como se a própria “encarnação” de Molière, tanto na sua atuação quanto na sua postura frente ao teatro que muito se assemelha ao ator e dramaturgo francês: não é por acaso que seu grupo se chama Teatro Poquelin, criado nos anos 80 em Bahía Blanca e, hoje, sediado em Santa Clara del Mar.

Em “Molière envenenado”, Héctor Rodriguez Brussa dá vida e voz a Tartufo, protagonista da obra homônima “Le Tartufeou l’Imposteur”, como um bufão falsamente devoto, considerando seu discurso que estabelece seus problemas com a Igreja.

De “O Doente Imaginário” (Le Malade Imaginaire), interpreta Orgon, um personagem hipocondríaco, carente, rico e avaro burguês que, na verdade, é um tipo comum nas comédias de Molière.

Da mesma forma, se utiliza das falas de Madelon, personagem de “As Preciosas Ridículas” (Les Précieuses Ridicules), navegando entre a sátira e o preciosismo e, dessa forma, cria uma dialética que, na luta dos contrários, chega a uma síntese que sugere o reinício de um conflito que não tem fim.

A trama de “Molière envenenado” ainda conta com Jean-Batiste Lully, o músico com quem Molière fez parceria em diversas peças, em especial em “O Fidalgo Burguês” (Le Bourgeois Gentilhomme).

Historicamente, sabe-se que Jean-Batiste Poquelin, dito Molière, morreu de um ataque fulminante, momentos depois de uma representação de “O Doente Imaginário”, aquela demolidora sátira contra os médicos. Mas considerando o quanto sua obra e seus personagens irritaram a sociedade, desde a corte, o clero, os médicos e tantos outros, nada melhor que a possibilidade de imaginar que ele tenha sido morto por envenenamento.

Coincidentemente, no Brasil, o romancista Rubem Fonseca, na obra “O Doente Molière”, também afirma que o francês não morreu vítima de um ataque cardíaco, senão impunemente envenenado por algum de seus múltiplos inimigos.

Assim, desenvolve em sua farsesca novela uma investigação policial em torno de um imaginário envenenamento de Jean-Baptiste Poquelin, concluindo que muitos dos “escândalos que abalaram Paris” um dia serão esquecidos, mas que Molière e seu teatro serão para sempre lembrados e, obviamente, amados.

Tudo isso ratifica a grandiosidade de “Molière, o envenenado”, de Héctor Rodriguez Brussa, como uma obra necessária para se pensar o teatro atual, tanto na sua abrangência política quanto na sua dramaturgia como forma de ressignificação do mundo.

Assisti ao “Molière envenenado” en Mercedes, Argentina, no Festival Internacional de Teatro “Olmedo Vive” 2019.

Wilson Côelho – Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 17 livros publicados. Licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES (Universidade Federal do ES); Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 22 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior – Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.

Don Oleari - Editor Chefão

Don Oleari - Editor Chefão

Radialista, Jornalista, Publicitário.
Don Oleari Corporeitcham

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