Recentemente recebi um vídeo, dos tantos que nos chegam diariamente pelo fluxo incessante do Whats App, em que uma ratazana acuava um gato e o punha para correr. Acho que não há imagem mais adequada para espelhar a situação brasileira do momento.
As pessoas sabem, intuem, quando as coisas estão erradas, de modo que aceitá-las, por várias circunstâncias, não significa concordância. Suas motivações variam da resignação bovina ditada pelo sentimento de impotência, a cultura de passividade que sempre se acomodou com a tutela estatal ou o instinto de segurança em não se expor, se arriscar à repressão e à represália dos que estariam circunstancialmente em condições de lhes prejudicar.
O surrealismo que toma do Brasil a partir das narrativas que se tecem não parece ter antecedentes históricos. Sempre tutelado por militares desde o nascimento da República, o país experimentou alguns períodos de exceção que se repetem agora com o assalto às instituições de maneira inédita.
Mas a subversão de princípios consagrados na Constituição Brasileira exatamente pela Corte, cuja estrita missão é assegurar o cumprimento desses princípios, instaura um estado de exceção que pouco difere da demonizada ditadura instalada no período 1964-1985, exceto que aquela era assumida, explícita e não se arrogava a personalíssima interpretação de “defesa do Estado de Direito”
Fake News
A polarização política se estampou numa suspeitíssima eleição onde o candidato eleito não alcançou 1% a mais que o oponente e negou-se uma indispensável auditagem no processo, naturalmente legitimada pelas suspeitas erguidas por evidências descomunais.
A começar pelo fervor tecnológico que não admitia a explícita vulnerabilidade do sistema.
Qualquer das partes, numa demanda desse porte e importância, teria o direito natural de assegurar-se ante instâncias neutras que o processo tenha se desenrolado corretamente, acatando os procedimentos regulares.
E aí entram, as versões modernas das versões que relatam fatos e que se constroem com propósitos que vão além da estória em si. Encobrem uma intenção, um objetivo.
Narrativas são boatos ou como foram rebatizados, as fake news, ou mesmo lendas urbanas – o conceito anterior destas – e se firmam como estratégia desde que Goebbels, o ministro da Propaganda do Nazismo, sentenciou que uma mentira repetida muitas vezes assume foros de verdade. A comunicação política apoderou-se disso com muita particularidade.
As estórias sempre se constituíram os mais poderosos meios de transmissão de mensagens e conhecimentos nas sociedades ágrafas. São recursos didáticos caros à tradição oriental e encontram seu momento mais sublime nas parábolas de Jesus que construíam metáforas espirituais em suas parábolas que, em particular, traduzia para os seus apóstolos.
A neurofisiologia moderna rendeu-se à sabedoria das estórias porque ativam o hemisfério direito, da imaginação e da criatividade e tendem a permanecer enquanto registros de memória. Por isso as estórias infantis nos acompanham por toda a vida. Se nos esforçarmos, recordamos detalhes das tantas que emolduraram nossa infância ao passo que esquecemos toda carga de informação recebida na escola e retida apenas o tempo suficiente para fazer as provas.
Bem, voltando ao Brasil de agora, deparamo-nos com as narrativas inspiradas pela polarização reducionista. Uma das primeiras vítimas dessa polarização foi o jornalismo já claudicante pela sua perda de hegemonia no relato do cotidiano.
As “stories” vêm substituindo o jornalismo. Nem falo de uma nova sintaxe instaurada pelas Redes Sociais e a simultaneidade. Nem da instantaneidade dos acontecimentos em qualquer lugar do mundo, que temos ciência em no máximo dez minutos. A questão do jornalismo não foi trazer fatos velhos.
Ele se vulnerabilizou por expressar mais um posicionamento do informante do que um relato distanciado, objetivo e isento da realidade a que se propôs descrever ou narrar. Jornalistas se posicionam à esquerda e à direita e nesse cabo de força dilaceram o princípio sagrado da informação verdadeira. A informação passa a ser colorida pelo viés de quem a descreve.
Sempre se falou que a isenção era um mito. De fato, o ser humano, em sua complexidade, porta referências que podem interferir numa avaliação objetiva, fora dos filtros de sua subjetividade. Mas a isenção é como a utopia, uma condição a ser perseguida, alcançada.
Há realidades que comportam outra percepção e função do jornalismo como nas sociedades em que os veículos se alinham ostensiva e explicitamente com as correntes políticas e oferecem seus relatos segundo seus critérios e princípios, honesta e explicitamente assumidos. E no Brasil, a força do Estado como cliente da imprensa, não favorece o distanciamento crítico desejável, mais particularmente nos Estados onde a presença pública é muito dominante como cliente, interferindo nesse relacionamento.
MENTIRAS “NOBRES”
Jornalistas ditos “de Esquerda” endossam o princípio de que os fins justificam os meios na promoção da desejável igualdade social. Ou da mitigação das profundas diferenças da sociedade. Aliás, isso é um valor da Esquerda, antes ainda de Antônio Gramsci, o sujeito que refundou o marxismo depois que o advento da eletricidade meio que esvaziou o conceito da mais valia com a proposta da revolução cultural.
Uma distorção ou mentira em favor de uma causa que se tem por justa, assim, se justifica. Isso explica a sanha do jornalismo de Esquerda que insiste em ignorar o quanto a Constituição tem sido rasgada por um STE fortuitamente favorável à sua causa.
Tome-se como narrativas as ligações do presidente anterior com milícias, as rachadinhas dos filhos, a homofobia, o genocídio da Covid, ao retardar por dois meses a aquisição de vacinas ainda questionáveis por autoridades respeitáveis da área médica, sua repulsa à cultura, ao extinguir o respectivo ministério e suspender os cachês culturais de Cláudia Raia, Caetano Veloso, Margarete Menezes e afins.
narrativas
Pela mesma medida e com algum esforço pode-se tomar como “narrativas”, o saque à Petrobrás, o Mensalão, zelador de Zoológico guindado a mega executivo, sítio, “triprex”, estocagem física de R$ 50 milhões, empréstimo a fundo perdido a mais de dezena de países “parceiros” drenando orçamento do BNDES, a mais alta taxa de juros da história, o maior desemprego da história e, por coroamento dessa “narrativa”, a mais brutal recessão enfrentada pelo país desde 22 de abril de 1.500.
Bolsonaro foi um acidente político tanto quanto Collor. Mais consistente, porém, se se medir o saldo do seu governo em vários aspectos, sem “narrativas” . Pela sua origem militar esteve sob a permanente suspeita de cortejar o arbítrio, com a generalização de que todo militar a priori é um fascista. Nem o fato de seu período administrativo desenrolar-se num prazo em que jamais o Congresso e o STS ostentaram tamanha autonomia.
Ou soberania. A história de 1964 ainda está por ser reescrita por um jornalismo não militante que mensure tanto as torturas e arbitrariedades do período como as reais circunstâncias em que ocorreram e o clamor da sociedade brasileira de então, endossado pela imprensa da época. Escamotear os valores que orientam a formação militar reduzindo-os à sedução pelo autoritarismo é tomar a exceção pela regra, a parte pelo todo. Enfim, uma generalização que padece do mal de todas generalizações.
De outro lado, a sequência de disparates que protagoniza o presidente Lula apenas mostra que o apoio incondicional tem muito mais uma orquestração de interesses facilitada por um fervor religioso que uma opção política. Bolsonaro foi um lobo solitário; Lula é o representante de um sistema amplo, complexo, que visa reproduzir uma experiência que, em nome do povo a ser resgatado da carência, criou as troikas e nomenklaturas, a nova casta de burguesia estatal que, por isso, jamais conseguiu oferecer ganhos efetivos à sociedade e somente se manteve à força dos canhões.
Jamais se legitimou e os canhões se calaram pela falta de pão. Collor surfou o desencanto do eleitorado e se construiu como persona midiática legando-nos a quebra da reserva de mercado da indústria automobilística e da informática que rendeu ao país um avanço inquestionável nesse aspecto. Depois, como todo blefe, não se sustentou. A grande frase do seu marketing pessoal ainda ressoa, por consistente: o Tempo é o Senhor da Razão.
Certamente caberá ao Tempo desnudar as falácias que se impõem no Presente. Lamentável é o quanto isso nos custará…(Eustáquio Palhares).
Editado por Don Oleari – [email protected]
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