Kleber Frizzera: Sempre | 11/10

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Os sonhos sempre importam

Neil Gaiman

 

1.

Caminhando, sempre deixo vazar sonhos, frutos da noite anterior, sobras ainda acesas, em brasas, de expectativas entrelaçadas, imaginadas.

Junto ao corpo, ao lado na caminhada, segue um outro, similar a mim, que carrega, na mochila, partes dos meus devaneios noturnos, que inquietos, sobram e saltam ao chão, escorregando fragmentos e desilusões.

Onde se forjam, onde se instalam, onde se guardam estes sonhos, sonhados aos bilhões, em cada noite?

A aceleração das mudanças econômicas, sociais e culturais, a expansão global do capitalismo, intensos deslocamentos campo cidade e o esvaziamento das relações comunitárias foi soterrando as memórias orais, práticas coletivas e ambientes tradicionais, isolando indivíduos, grupos e distorcendo identidades fundacionais.

Se a natureza já tinha sido profanada pela ciência, a partir do século XVIII, expulsando deuses, ninfas e histórias fantásticas que se refugiavam nas florestas, a revolução industrial, fábricas, estradas de ferro e metrópoles, tornaram opacas as superstições, monstros e os mitos ancestrais da humanidade.

Impactados pelo contínuo progresso, velhos edifícios e matas, ambientes naturais e urbanos foram sendo demolidos ou apagados, ao gosto dos lucros, espetaculares transformações e renovações, deixando feito lixo, os sonhos em comum. Extinguem-se as fontes originais de suas origens.

2.

“A memória das pedras da cidade, a permanência das referências espaciais, nos conferem um sentimento de ordem e quietude, a ilusão de nada haver mudado através do tempo, tranquilizador para uma identidade pessoal e coletiva”, escreve Joel Candau.

Vestígios, relíquias, ilusões de eternidade, “apenas os traços fazem sonhar”, escreveu Renê Char, se instalam como indícios dos eventos passados e de suas permanências, e quando desaparecidas suas marcas e perdas, são ocupados, vazios cenários e cegas janelas, por mudos fantasmas de outros tempos.

No século XX, em tempos de mutação acelerada, cresce uma sensibilidade patrimonial, quando muitas nações “temiam, pela perda e pelo esquecimento de suas memórias”. Fixos e resistentes, expostos à vista pública, as edificações, espaços urbanos e naturais selecionados, são convocados a guardar e revelar a legitimidade de um momento, a emitir sentidos identitários e responder ao desaparecimento das lembranças, principais fornecedoras das narrativas atuais.

A mercantilização dos objetos, signos, construções e paisagens, virou um negócio mundial, uma experiência única, a ser oferecida aos turistas e visitantes, fantasiada, refeita e extraída os seus conflitos, sofrimentos, interdições, deixando somente vazar lembranças felizes.

3.

Para Candau, o pertencimento contemporâneo, que vai “de cada individuo a uma pluralidade de grupos torna impossível a construção de uma memória unificada”, hoje dispersa e que fragmenta efeitos e narrativas. Nas disputas e esforços “para ajustar o passado aos jogos identitários do presente”, deforma-se a seleção, a guarda das coisas e a formulação de significados propostos à hegemonia simbólica, através de um recorte sensível e ideológico, material ou virtual.

A valorização imobiliária depende de uma permanente renovação, impondo novos repertórios urbanos de gozo e usufruto de modas e estilos, consumo exclusivo e migalhas lançadas à multidão. Máscaras e fantasias, a cada estação, informam releituras, somam-se aos ornamentos tornados marcas globais de tempos em revolução. Após os rápidos e intensos gastos estes esforços são devolvidos ao baú de recordações, abandonados em ruínas, aguardam o um outro momento para a eventual ressureição.

Configurações das imagens da memória tornam-se cada vez mais instáveis, se alterando diante de descobertas, interpretações de amplos e variados espectros, desdobramentos de sentidos, associados a locais e identidades. Cada um destes movimentos busca recuperar sintomas, tenta resgatar apagamentos e romper interdições históricas, em escavações que rastreiam representações culturais e disputas políticas, erguendo uma colcha de retalhos, um complexo quebra-cabeças instável e sempre incompleto.

4.

Aos indivíduos comuns, solitários, impactados por múltiplos e plurais estímulos, circulando em saltos na internet, habitando grupos diversos, virtuais e materiais, sofrendo a pressão de hibridas conexões, será possível ofertar, inventar um lugar especial, compartilhado, que ofereça o cuidado, a proteção e um significado para a vida?

Kleber Frizzera

Agosto 2022/outubro 2022

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Don Oleari - Editor Chefão

Radialista, Jornalista, Publicitário.
Don Oleari Corporeitcham