Terceira margem
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia (João Guimaraes Rosa).
1.litoral
Movimentam-se as marés, deixando indefinidos os limites entre as águas e as terras, expondo dissolvidos lugares na escura lama e areia branca do mangue, a cada momento, de ida e volta, do rodízio de luas e de sois. Indefesos, seus habitantes ergueram muralhas e cais, alinharam segmentos a separar o projeto humano da cíclica natureza, reservando cada parte aterrada a particulares destinos, aqui situados ou de longe ambicionados nos navios mercantes.
Para Cristian Dunker, tendemos a resolver oposições em formas de dualismo, entre identidade e metamorfose, entre conservação e transformação, conceitos insuficientes para localizar o que não pode ser integrado, nem realizado simbolicamente, constituindo assim a segregação real.
Para ele, o que precisamos é o pensamento de uma terceira zona, indiferenciada e amorfa, que represente o elemento excluído através de “um mapa que não seja binário, um mapa que interprete a fronteira impossível, …. como um litoral”.
Continua Dunker, “Um litoral tem zonas de indeterminação, pontos de interpenetração e transformações determinadas pela perspectiva que se assume diante dele…um litoral pode comportar mares, recifes, praias… o litoral não e´ uma fronteira natural ou artificial, um litoral é uma fronteira móvel”.
Um litoral, uma fronteira móvel, como em uma ilha, como a ilha de Vitória, se apresenta impreciso e indeterminado, com desdobradas margens nos compassados ritmos dos anos e das marés.
- criação e salvação
Giorgio Agamben afirma que na tradição islâmica a redenção tem precedência sobre a criação, em que “aquilo que parece subsequente seja na verdade anterior”. Reparação que precede ao aparecimento do pecado, do erro e da injustiça, a redenção “não é um remédio para a queda das criaturas, mas aquilo que torna compreensível a criação e lhe dá o seu sentido”.
Mas qual o sentido da divisão da práxis humana e criação divina em espelhadas obras, tal quando “opõe um deus criador a um deus salvador ou na oposição, na versão gnóstica, a um demiurgo maléfico criador do mundo, um deus estranho ao mundo?“
Distintas e contrastantes, estas opostas ações são complementares, na invenção e salvação do mundo, são inseparáveis, em ambas, “aquele que age e produz, salva e redime a sua criação”.
Não há nada ou ninguém que não esteja, em última instância, destinado a desfazer-se como a profusão das coisas, pequenas e grandes, que “estão mais cedo ou mais tarde condenadas a desaparecer, …a se transformar em uma massa interminável, um caos informe e destruído”, visto nas ruínas fantasmagóricas das cidades e lugares construídos pelos homens e pelas mulheres.
- poder e lugar
Em torres distintas, por séculos, se desafiaram, frente a frente, no outeiro de Vitória, igreja e poder, de um lado a catedral deixada incompleta, de outro, o palácio erguido nos restos do colégio jesuíta, impondo seus parcos poderes à desiludida província, rastejando séculos ao litoral na infeliz sobrevivência de senhores e escravos.
De fundação à platibanda, na ilha fixaram-se estreitas ruas e edificações, abriram-se quintais e amplas janelas ao elísio encanto, ergueram-se tortas e tristes fachadas, derrubadas ao alvorecer da república, feito de um intenso sonho positivo.
Carl Schmitt chama a atenção para a origem do direito, a partir do chão, pela apropriação das terras, pela violência que inaugura uma norma do espaço, fazendo da posse da terra um lugar, que gera, que funda uma outra ordem, um nomos. Trata-se de uma violência secular que foi imposta, na colônia, aos originais moradores da terra, nômades indígenas, sem estado ou privadas propriedades.
O atual processo de globalização econômica, para Byung Chul Lan, afrouxa a ligação territorial com o poder embora não anule completamente a lógica primeira da localização, passando “a significar a criação de espaços organizados de maneira isocêntrica, que reúne e recolhe tudo para si”.
Dupla violência, da imposição da propriedade privada e da mercantilização da ordem global, que recorta em partes a natureza e o artifício, limita pastos e matas, discrimina muralhas e praças, informa status e poderes no território, e, sem peso, manipula gostos e esvazia sentidos, instala narrativas e espadas, agressões que acumulam derrotas, derramam e escamoteiam os prazeres e sonhos mais humanos.
Kleber Frizzera
Novembro 2022
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971) e mestrado em Arquitetura pela Ufes Universidade Federal do ES (1998). Foi secretário municipal de desenvolvimento da Prefeitura de Vitória/ES (2006/2012) e professor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo ( 1978/2015) – https://www.ufes.br/. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Fundamentos de Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente em projetos de arquitetura, arquitetura teoria e crítica, arquitetura áreas centrais, planejamento territorial e renovação urbana.
Terceira margem
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