velha senhora
A casa foi vendida com todas as suas lembranças
Todos os móveis todos os pesadelos
Todos os pecados…
A casa foi vendida com seu bater de porta
Com seu vento encanado sua vista do mundo
Por vinte, vinte contos (Carlos Drummond de Andrade).
Alguns edifícios, como algumas pessoas, envelhecem com dignidade, e mesmo quando perdem sua vitalidade, esvaziados seus usos comuns, mantêm sua serena beleza diante das desastradas transformações urbanas que se desenvolvem na sua frente. Uma destas edificações se localiza na avenida Saturnino de Brito, na esquina com a rua Coração de Maria, na Praia do Canto.
Antiga conhecida, acostumamo-nos com a sua constante presença, seus jardins e árvores bem tratados, suas janelas cerradas preservando a intimidade, suas fachadas elaboradas, uma suave permanência. Mesmo diante do selvagem rumor dos carros, continuou atraindo o olhar curioso e afetuoso dos passantes diários.
Apaixonados, não cansamos de observar seus finos detalhes, a elaborada cobertura e a maneira relaxada e tranquila que nos devolve a admiração, nos mantendo felizes por partilhar, por instantes, o encantamento de sua forma e materialidade, imaginando os eventos que abrigou em sua longa história.
A sua anunciada destruição, por uma espalhafatosa placa de anúncio de “vende-se”, a sua próxima condenação à extinção, nos entristece, da mesma forma que o anúncio da morte esperada de uma amiga, de uma idosa tia.
Com sua provável demolição, substituída por um condomínio, com fachadas envidraçadas, desaparece mais uma memória física, inscrita na Praia do Canto e na cidade de Vitória/ES.
Desenhado em 1895 pelo urbanista Saturnino de Brito, o Novo Arrabalde/ Praia do Canto, atendeu uma nova classe social, que após a Proclamação da República, se formou e se enriqueceu com a produção e exportação do café e com a expansão do aparelho do estado.
Durante décadas, suas praias, do Canto e Comprida, suas ruas em areia, suas casas projetadas com esmero, iriam atrair e abrigar as novas famílias pequeno–burguesas, conter e estimular um novo modo de vida urbana, oposto ao centro da velha capital colonial. Foram desaparecendo, uma a uma, as residências que adornaram e contiveram essas vidas, substituídas por altos edifícios, que negam os seus interiores decorados, e não conseguem disfarçar os distantes afastamentos das ruas e avenidas.
Quando substituídos, significados e lembranças antes inscritos nas construções pela imaterialidade do mundo digital, pelas experiências virtuais e afastamentos corporais, a destruição das marcas históricas parece não mais importar, e nos aceitamos menores, esquecidos das sucessivas perdas que esvaziam o sentido e o compartilhamento da vida pública.
Conformados, voltamos nossa atenção às lembranças virtuais, desencarnadas, fixamos e mantemos nossos olhares nas brilhantes e planas telas, aceitamos que fake news suspendam a verdade e os reais acontecimentos.
Híbridos cyborgs, esvaziados dos estímulos corporais, aceitamos passivos a transferência de nossas narrativas e memórias às nuvens digitais, derrotados submissos à inteligência artificial e aos logros dos algoritmos e dos aplicativos.
As velhas senhoras que descansem em paz.
Kleber Frizzera
Janeiro 2023
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971) e mestrado em Arquitetura pela Ufes Universidade Federal do ES (1998). Foi secretário municipal de desenvolvimento da Prefeitura de Vitória/ES (2006/2012) e professor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo ( 1978/2015) – https://www.ufes.br/. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Fundamentos de Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente em projetos de arquitetura, arquitetura teoria e crítica, arquitetura áreas centrais, planejamento territorial e renovação urbana.
velha senhora
velha senhora
Kleber Frizzera: Vitória, uma cidade envelhecida | 17/1
velha senhora, velha senhora