Aqui Wilson Coêlho
…os preconceituosos e sem qualquer conhecimento falam contra Paulo Freire, Karl Marx e outros…
Para entendermos o que vemos, faz-se necessário questionarmos os olhos que veem e o que supostamente estes estão vendo. Na verdade, os olhos não veem pura e simplesmente. Não temos uma visão absoluta a partir dos olhos, considerando que o que vemos passa pela mediação do entendimento. Os olhos apenas captam uma imagem e o cérebro a significa ou traduz a partir de nossas vivências e conhecimentos no tempo e no espaço.
Olhando para uma corda, por mais que tenhamos um acordo linguístico como um substantivo em comum, ela não é vista da mesma forma na casa de um boiadeiro e pela família com a história de um enforcado. Pensando no que tem ocorrido no Brasil, por um lado, temos o vienense Stefan Sweig, em seu livro “Brasil, um país do futuro”, arriscando-se a uma espécie de profecia de que nosso país seria uma alternativa ao mundo de ódio que perpassava em passos largos a Europa, tendo em vista que aqui se asilou durante a Segunda Guerra Mundial.
Obviamente, podemos imaginar que ele estivesse encantado com Gilberto Freyre em suas ideias sobre o país da miscigenação racial, bem como com Sérgio Buarque de Holanda e seu elogio à cordialidade do brasileiro.
Por outro, temos a fina ironia de Millôr Fernandes afirmando:
“O Brasil tem um enorme passado pela frente”.
Num certo sentido, até por ser brasileiro e ter consciência de nossa trajetória, desde o processo de invasão e colonização, o humorista compreende os ciclos históricos de nosso país que, conforme Karl Marx, em “18 de Brumário de Luís Bonaparte”, “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”.
O estarrecedor é nos depararmos com discursos que povoam as mídias, as redes sociais e as conversas em geral por pessoas que não têm a mínima preocupação com o mal que fazem ao mundo. Asfixiados pela subjetividade e, apesar de não terem nenhum conteúdo e compromisso com a ética se sustentam de mentiras sob a pretensa ideia de que se autodenominando como “homens de bem” a tudo estejam autorizadas.
Verdade
O mais desastroso é ver capitalistas sem capital fazendo esse discurso como ventrículos dos supostos “homens de bens”.
Como disse Umberto Eco:
“As mídias sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”.
Hoje, ou talvez sempre, tendo em vista que muitos diante das facilidades dos meios de comunicação virtual, qualquer analfabeto político, qualquer imbecil pode se arvorar a um cientista político e fazer “live”, “podcast” e etc., ou publicar/compartilhar nas redes sociais sem nenhum compromisso com a história, com o conhecimento e, pior, sem nenhuma preocupação com a verdade.
Pós verdade
Aqui não se trata de uma verdade absoluta e impassível de dúvidas e contradições, mas de um postulado que se sustenta de pesquisas e comprovações para se chegar aos fatos. Mas o que está em questão é a pós-verdade, que está muito em voga para os que não têm compromisso com a história construída pela memória a partir das condições materiais que compõem o significado de mundo.
De acordo com o dicionário Oxford, a pós-verdade é entendida como “a ideia de que um fato concreto tem menos significância ou influência do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.
A partir daí, a verdade dos fatos é colocada em segundo plano quando uma informação sustenta as crenças e emoções das massas, resultando em opiniões públicas manipuláveis, exploradas pelos meios de comunicação para fins midiáticos, econômicos ou políticos. A pós verdade faz com que as massas “prefiram” acreditar em determinadas informações que não necessitam ser realmente verificadas.
Mas apesar do exaustivo emprego do jargão de que “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, os defensores da pós-verdade, disseminando e falsificando notícias referendam o prefixo “pós” como se afirmando a ideia de que a verdade ficou para trás e que não mais interessa a pesquisa e o debate.
Estamos assistindo a um filme de terror onde espectros ressentidos e de espíritos sabotadores à paisana se dizem indignados diante de militares que supostamente incriminam os vândalos e golpistas invadindo os equipamentos dos três poderes em Brasília.
Será uma mera ignorância ou mesmo um exercício do mau-caratismo não enxergar que esses militares não fazem outra coisa senão uma tentativa de limpar essa farda golpista e suja de sangue, conivente e, muitas das vezes, protagonistas de todas as violências contra o povo e o estado de direito desde a proclamação da república? Será tão difícil assim entender que esses militares somente estão tentando se eximir de uma culpa por suas ações diretas e indiretas, pela omissão e/ou conveniência diante da história de barbárie que viveu e vive nosso país?
Por que não se indignaram com o genocídio e o desmonte das políticas públicas e sociais da desgraça direcionada aos trabalhadores desde o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e a prisão de Luis Inácio Lula da Silva? Por que fizeram silêncio com o fato do Brasil ter voltado ao mapa da fome por falta de políticas públicas do desgoverno anterior?
Se nisso há alguma ousadia, esses fanfarrões apenas ousaram a zombar e a desmerecer a consciência do povo. Fazem uma alusão leviana a processos contra ministros nomeados pelo Governo Federal, sem o mínimo de hombridade de, pelo menos, citar os referidos processos e suas legitimidades.
Da mesma forma, jogam fezes no ventilador como uma tentativa de despolitizar o Congresso Nacional. É um jargão muito fácil e oportuno fazer o povo acreditar que todos os políticos são corruptos para que o povo não perceba que temos hoje o pior dos congressistas eleitos ao longo de nossa história, inclusive, composta por mais de dois terços de deputados de direita.
Não passa de um exercício de tentar ofuscar as ações dos poucos políticos de esquerda que compõem o Congresso Nacional e, diga-se de passagem, justamente os únicos que defendem as causas sociais e de proteção aos alijados da sociedade. Historicamente, em todo o mundo, todos os ganhos em prol do povo sempre foram pleiteados pela esquerda. Recentemente, tivemos uma vitória sobre um projeto de lei que determina a igualdade de salários para homens e mulheres que exercem a mesma função.
Mas foi uma luta árdua e uma aprovação apertada, tendo em vista que a direita que é machista e misógina, centrada em uma visão sexista, que coloca a mulher em uma relação de subalternidade em relação ao homem, inclusive, amparados numa referência à Bíblia. É muito comum, nos discursos dos idiotas, falas preconceituosas e sem conhecimento contra Paulo Freire, Karl Marx e tantos outros. Mas se questionados sobre seus fundamentos ou fontes não têm nada a dizer.
Falar mal de Paulo Freire soa tão estúpido porque seu processo de educação não tem nada a ver com o nosso sistema e nunca foi implantado em nenhum lugar do Brasil. Não tem nada a ver com nosso sistema. Talvez seria melhor estudar Louis Althusser sobre a “Educação como aparelho ideológico do Estado”. No que diz respeito a Karl Marx, é muito comum que esses “gênios” da idiotice o apregoem como atrasado e que “o mundo mudou”.
Obviamente o mundo mudou e muda a cada instante, mas as classes dominantes se organizam para que ele mude apenas na superfície e na criação de artefatos para a permanência do mesmo. Trata-se de uma mudança aparente porque o estado de exploração do trabalho alheio continua o mesmo, apesar de suas diferentes formas para que os trabalhadores produzam riquezas das quais eles não terão acesso, mas que cada vez mais serão expropriados e roubados pelos que nada produzem.
O mais incrível é que, os mesmos que consideram Marx uma coisa do passado, têm os seus discursos perfumados de modernos ou pós-modernos se sustentando em teóricos ainda mais antigos que o revolucionário alemão, ou seja, têm como Bíblia as obras de Adam Smith e de Ricardo. Digo supostamente porque a maioria sequer sabe de onde tiraram essas “ideias”.
Os fascistas têm uma obstinação contra o debate e, não por acaso, odeiam o Fórum de São Paulo, o Greenpeace, os Orçamentos Participativos e toda e qualquer tentativa de refletir e colocar a sociedade, a realidade e o mundo em questão. Eles têm um mundo pronto e acabado e, portanto, morto, onde as coisas não se movem, quanto entendem a morte como a perfeição.
Também porque não entendem que, mesmo depois de mortos, a vida continua através dos micróbios que consumirão suas carnes putrefatas e, junto delas, muito daquilo que acreditavam que era um “pensamento”. Esgotadas todas as possiblidades do verdadeiro pensamento como uma ferramenta para se estabelecer uma dialética entre o “pensado” e a realidade, os fascistas/fundamentalistas se agarram a Deus como náufragos sem nenhuma predisposição de aprender a nadar.
Se arvoram como privilegiados, como os filhos do dono que a tudo podem. Daí fazem dele o seu bastião para confiarem, temerem e a se submeterem. Assim, acreditam estar atuando no limiar da honra, da dignidade, da moral e da prudência.
Tudo isso não passa de um exercício do mau-caratismo e, quando menos pior, por simples ignorância. Enfim, atendo-nos à dialética, entre Stefan Zweig e Millôr Fernandes, como tese e antítese, ou a luta dos contrários, temos a síntese de Raul Seixas quando afirma que “o hoje é apenas um furo no futuro, onde o passado começa a jorrar”. A história do safari, se contada pelos elefantes, não seria a mesma narrada pelos caçadores.
Wilson Coêlho – Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 25 livros publicados. Licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES; Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 23 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.
Edição, Don Oleari