UEE-ES
ARTIGO |
Por Alexandre Caetano
Nem bem haviam ainda passado duas semanas em que o golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 fez 60 anos, quando perdemos mais um dos importantes personagens que protagonizaram os eventos dramáticos que se desenrolaram no Espírito Santo naqueles dias.
Foi no sábado, 13, que perdemos, aos 87 anos, o cirurgião dentista e ex-presidente do Conselho Regional de Odontologia do Espírito Santo (CRO-ES), Jayme Lanna Marinho.
Lanna Marinho foi líder estudantil e era o presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE-ES) na época do golpe.
Junto com outros diretores da entidade e líderes sindicais e de movimentos populares no Espírito Santo, foi preso depois da vitória dos golpistas.
Felizmente tive a oportunidade de entrevistar Jayme Lanna Marinho por pelo menos duas vezes. Ele também prestou depoimento para a Comissão da Verdade da Ufes.
No dia 31 de março de 1964, o então jovem presidente da UEE estava em Manaus (AM), participando de um seminário promovido pela União Nacional dos Estudantes (UNE), quando o general Olímpio Mourão Filho anunciou o início da movimentação de tropas comandas por ele na Região Militar de Juiz de Fora (MG), em direção ao Rio de Janeiro, com o objetivo de derrubar o governo democrático e constitucional do presidente João Goulart (Jango).
De acordo com o relato de Lanna Marinho, na mesma hora as lideranças estudantis que estavam presentes ao seminário decidiram suspender o evento e retornar para seus Estados de origem para tentar organizar a mobilização de suas bases.
No entanto, o então presidente da UEE foi preso ainda no aeroporto de Recife (PE), quando aguardava em trânsito um voo para o Espirito Santo.
Ao chegar preso em Vitória, Lanna Marinho foi primeiro para a Chefatura de Polícia Civil, que na época ficava na Praça Misael Pena e que, segundo ele, logo ficou superlotada com as prisões feitas com a vitória do golpe.
Junto com outros presos considerados “mais importantes”, ele então foi levado para o quartel do 3º BC (Batalhão dos Caçadores), na Prainha, em Velha – atual 38º Batalhão de Infantaria (38º BI) – onde relatou ter passado por episódios de tortura psicológica.
O então líder estudantil contou que, certa noite, foi retirado da cela onde estava, teve os olhos vendados e levado para uma simulação de fuzilamento na prainha que existe na área do quartel.
Num outro dia, ele e outro dirigente da UEE, Roberto Cortês – já falecido e que também estava preso no quartel – foram levados de lancha pelos militares para um barco ancorado em alto mar, onde foram deixados durante o dia todo, debaixo do sol, sem água e comida.
Segundo Lanna Marinho, os militares debocharam dos dois e mandaram que eles remassem em direção à Cuba.
Dias depois, Jayme Lanna e outros 14 presos, conforme notícia publicada no matutino carioca O Jornal, foram transferidos para o antigo Quartel do Corpo de Bombeiros Militar, no Parque Moscoso, onde na época funcionava o Corpo da Guarda do Palácio Anchieta.
Lá, permaneceram presos por mais algumas semanas. No entanto, enquanto esteve preso lá, pode frequentar as aulas da antiga Faculdade de Odontologia, acompanhado de uma escolta policial.
Anos depois perseguição quase impede nomeação
Passados alguns anos, seu passado como presidente da UEE-ES por pouco não o impediu Lanna Marinho de ser efetivado como professor do curso de Odontologia da Ufes, mesmo tendo sido aprovado em primeiro lugar no concurso realizado para preenchimento da vaga, em 1971.
O processo de nomeação demorou dois anos para ser efetivado e ele teve que enfrentar o constrangimento de uma comissão de inquérito liderada pelo famigerado chefe da Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi) da Universidade, Alberto Monteiro, considerado o principal homem da ditadura militar dentro da Ufes.
Mais do que isso, segundo o relato dele, para poder viajar para participar de eventos e cursos, o agora professor da Ufes precisava ter autorização de Alberto Monteiro.
Surpresa desagradável
O que Lanna Marinha não sabia, e só tomou conhecimento na entrevista que fiz com ele há quase 30 anos, em seu consultório particular, quando lhe mostrei a cópia de um documento que havia encontrado no Arquivo Público Estadual (APES), no acervo do extinto Dops (Delegacia de Ordem Política e Social), em que que o professor Moacir Lofêgo, titular da 1ª cadeira de Clínica Odontológica, também havia feito um movimento para impedir sua nomeação.
O documento era um expediente dirigido ao então diretor da antiga Faculdade de Odontologia, professor João Luiz Horta Aguirre, em que Lofêgo manifestava-se de forma contundente e até ameaçadora contra a nomeação de Lanna Marinho, por considerá-lo um “subversivo”, fazendo referências ao tempo em que havia sido presidente da UEE e líder estudantil.
Na época, Lanna Marinho era candidato a presidente do CRO-ES, mas ficou visivelmente consternado com quando lhe apresentei a cópia do documento. Só conseguiu balbuciar:
“É, foi meu colega como professor do curso de Odontologia”.
A cópia do documento informava que havia sido difundido de forma sigilosa para a Reitoria da Ufes e entre os órgãos de repressão que atuavam no Estado, como a Superintendência da Polícia Federal, o Comando do 3º BC e Secretaria de Segurança Pública.
Depois disso, Lanna Marinho ocuparia a presidência do Conselho Regional de Odontologia do Espírito Santo (CRO-ES) por dois mandatos.
Ele também foi um dos fundadores da Sociedade de Ortodontia do Espírito Santo. Me lembro de Jayme Lanna Marinho como uma pessoa de fala mansa, afável, muito atencioso com que conversava com ele.
Uma das boas histórias que ele me contou na entrevista que fizemos é que teria sido durante a gestão e da que a antecedeu, presidida por Dylton Lírio Neto, que mais tarde seria deputado estadual e presidente da Assembleia Legislativa (Ales), que a direção da UEE se aproximou e passou a integrar dos setores mais progressistas e de esquerda que dirigiam a UNE naquele período.
A UEE-ES havia sido dominada por estudantes de posições conservadoras durante anos.
O ex-líder estudantil contou que num Congresso da UNE, realizado possivelmente em 1962 ou 1963, ele, que era ligado à Juventude Universitária Católica (JUC), e parte da delegação do Espírito Santo decidiram ingressar na Ação Popular (AP), então uma corrente de esquerda ligada à Igreja Católica, depois de participar de discussões para conhecer as propostas de diversos grupos políticos que atuavam no ME.
Essa ação foi definida depois de uma conversa e da orientação que receberam então do presidente da UNE, Vinícius Caldeira Brant (1962-1963), que seria preso político durante os Anos de Chumbo e também já é falecido.
Na semana passada, quando escrevi um artigo sobre a morte do jornalista Jô Amado, fundador e editor-chefe do jornal Posição, única publicação da chamada imprensa alternativa de resistência e oposição à ditadura que existiu aqui no Espírito Santo na década de 1970, fiz referência a um poema de Bertold Brecht, que falava de pessoas que lutaram durante toda a vida, e por isso eram imprescindíveis.
No mesmo poema, o grande dramaturgo e poeta alemão não deixa de destacar que todos aqueles lutavam, ainda que fosse por anos ou por apenas um dia, também eram importantes, porque a construção de um mundo diferente e mais justo é, antes de tudo, uma obra coletiva.
Assim pensando, podemos afirmar com certeza que, com a morte de Jayme Lanna Marinho, perdemos um pedaço da história das lutas sociais e populares do Espírito Santo.
Entretanto, como líder estudantil, professor da Ufes e profissional da Odontologia, Lanna Marinho, certamente deixou impressas marcas e um legado que devemos nos esforçar para que não sejam esquecidas, principalmente quando vivemos no país um momento de constantes ameaças contra a democracia por saudosistas de uma ditadura que prendeu, perseguiu, torturou, exilou e matou milhares de pessoas.
É o melhor que podemos fazer em defesa da construção de uma sociedade socialmente justa e democrática (Alexandre Caetano).
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