Rubens Pontes | Mario e Oswald: dois intelectuais com mesmo sobrenome e duas visões diferentes da vida | Poema Carnaval Carioca | 9/9

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Mario e Oswald

Mario e Oswald

COLUNA AQUI RUBENS PONTES

MEUS POEMAS DE SÁBADO

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Rubens Pontes,
jornalista

 

Leitores do Don Oleari, Portal de Notícias, não ignoram o fato de que Mario de Andrade e Oswald Andrade, com um mesmo sobrenome, não eram parentes, mas intelectuais solidariamente pioneiros que passaram à História como criadores e organizadores da Semana da Arte Moderna, em 1922.

mario_e_oswald_de_andrade106213-1-1.jpg 9 de setembro de 2023 21 KBO que nem todos conhecem é o motivo do rompimento das relações entre os dois, ocorrida quando Oswald Andrade, ácido, afeito a polêmicas e discussões, chamou publicamente Mário de Andrade – 9 de outubro de 1893, São Paulo – 25 de fevereiro de 1945, em São Paulo – de “o nosso Miss São Paulo” e o apelidou “Miss Macunaíma” (*).

Oswald de Andrade fazia insinuações sobre a sexualidade do antigo amigo e companheiro numa sociedade machista e homofóbica como a de São Paulo daquela época.

Mas o mistério em torno da sexualidade de Mário de Andrade só foi desvendado depois de sua morte, quando o arquivo com seus textos e correspondência foi consultado.

Mario-de-Andrade-de-oculos-em-companhia-de-Candido-Portinari-Antonio-Bento-e-Rodrigo-Melo-Franco-em-1936.-1-2.jpg9 de setembro de 2023
Mário de Andrade (de óculos), em companhia de Candido Portinari, Antonio Bento e Rodrigo Melo Franco, em 1936

Em sua produção literária, o tema apareceu de forma esparsa, e nunca publicou texto em que assumisse ser gay.

Mário de Andrade possuía um círculo de relações restrito, trocando correspondência principalmente com Manuel Bandeira, seu fraternal amigo e confidente, até seus últimos dias de vida.

Foi somente tempos depois de sua morte, que a revista “Época”, baseada na Lei de Acesso à Informação, obteve autorização para publicar correspondência trocada entre os dois amigos, o que fez em junho de 2015.

O conteúdo da correspondência íntima de Mário de Andrade a Manoel Bandeira no dia 7 de abril de 1928 foi levantado pelo Don Oleari, Portal de Notícias, que o reedita, ipsis literis:

“Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto. Mas em que podia ajuntar em grandeza ou melhoria para nós ambos, pra você, ou pra mim, comentarmos e elucidar sobre a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade?

Em nada.  Valia de alguma coisa eu mostrar o muito de exagero nessas contínuas conversas sociais? Não adiantava pra você, que não é individuo de intriga sociais. Pra você me defender dos outros? Não adiantava nada pra mim porque toda vida tem duas vidas, a social e a particular, na vida particular isso só interessa a mim e na social você não conseguia evitar a socialização absolutamente desprezível duma verdade inicial”.

Ao final de sua correspondência, Mário de Andrade passa a Manoel Bandeira a responsabilidade pelo fim de sua carta:

“…eis aí uns pensamentos jogados no papel, sem conclusão e nem consequência; faça deles o que quiser”.

Resposta do amigo de todos os momentos:

“Fique tranquilo: a sua perigosa carta chegou”.

Manoel Bandeira

A discrição e a confiança do correto amigo asseguraram-lhes uma amizade até o fim da vida de Mário de Andrade.

A Coluna indiscreta revela de passagem ter sido Manoel Bandeira, com seus óculos fundo-de-garrafa e seus dentes proeminentes abertos em permanente sorriso que extrapolava os limites da boca, sem medo de parecer feio, encantava pela espontaneidade, pela correta postura e honesta preocupação com seus amigos, um homem de muitas mulheres, solteiras, casadas, viúvas. Ao mesmo tempo mais de uma, justificando com seus versos:

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.

A alma é que estraga o amor.

Só em Deus pode encontrar satisfação

Não noutra alma

Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

carnaval_carioca-1-1.jpg 9 de setembro de 2023 33 KBO Don Oleari, Portal de Notícias, e a Coluna rendem sua homenagem a Mário de Andrade, o inovador do modo de pensar dos intelectuais brasileiros, publicando seu instigante e surpreendente poema Carnaval Carioca.

Um dos mais longos escritos por poetas brasileiros.

Abaixo, mais sobre o rompimento de Mario de Andrade com Osvald de Andrade:

https://colecionadordesacis.com.br/2022/08/18/miss-macunaima-conheca-o-texto-que-marcou-o-rompimento-entre-mario-e-oswald-de-andrade/

Rubens Pontes, jornalista

Capim Branco, MG

Carnaval Carioca

Mário de Andrade

(a Manuel Bandeira)

A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos

Bulhas de cor bruta aos trambolhões

Setins sedas cassas fundidas no riso febril…

Brasil!

Rio de Janeiro!

Queimadas de verão!

E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu.

Carnaval…

Minha frieza de paulista

Policiamentos interiores,

Temores da exceção…

E o excesso goitacá pardo selvagem!

Cafrarias desabaladas

Ruínas de linhas puras

Um negro dois brancos três mulatos, despudores…

O animal desembesta aos botes pinotes desengonços

No heroísmo do prazer

sem máscaras supremo natural.

 

Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos

Ante o sangue ardendo do povo chiba frêmito e clangor

Risadas e danças

Batuques maxixes

Jeitos de micos piricicas

Ditos pesados, graça popular…

Ris? Todos riem…

 

O indivíduo é caixeiro de armarinho na Gamboa.

Cama de ferro curta por demais,

Espelho mentiroso de mascate

E no cabide roupas lustrosas demais…

Dança uma joça repinicada

De gestos pinchando ridículos no ar.

Corpo gordo que nem matrona

Rebolando embolado nas saias baianas,

Braço de fora, pelanca pulando no espaço

E no decote cabeludo cascavéis sacoteando

Desritmando a forçura dos músculos viris.

Fantasiou-se de baiana,

A Baía é boa terra…

Está feliz.

 

Entoa atoa a toada safada

E no escuro da boca banguela

O halo dos beiços de carmim.

Vibrações em redor.

Pinhos gargalhadas assobios

Mulatos remeleixos e buduns.

Palmas. Pandeiros – Aí, baiana!

Baiana do coração!

Serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos,

Este cachorro espavorido

Guarda-civil indiferente,

Fiscalizemos as piruetas…

Então só eu que vi?

Risos. Tudo aplaude. Tudo canta:

– Aí, baiana faceira,

Baiana do coração!

Ele tinha os beiços sonoros beijando se rindo

Uma ruga esquecida uma ruga longínqua

Como esgar duma angústia indistinta ignorante…

Só eu pude gozá-la.

E talvez a cama de ferro curta por demais…

Carnaval…

A baiana se foi na religião do Carnaval

Como quem cumpre uma promessa.

Todos cumprem suas promessas de gozar.

Explodem roncos roucos trilos tchique-tchiques

E o falsete enguia esguia rebejando pelo aquário multicor

Cordões de machos mulherizados,

Ingleses evadidos de pruderie,

Argentinos mascarando a admiração com desdéns superiores

Desgringolando em lenga-lenga de milonga,

Polacas de indiscutível índole nagô,

Yankees fantasiados de norteamericanos…

Coiozada emproada se aturdindo turtuveando

Entre os carnavalescos de verdade

Que pererecam pararacas em derengues meneios cantigas,

[chinfrim de gozar!

Tem outra raça ainda.

O mocinho vai fuçando o manacá naturalizado espanhola.

Ela se deixa bolinar na multidão compacta.

Por engano.

Quando aproximam dos policiais

Como ela é pura conversando com as amigas!

Pobre do solitário com chapéu caicai nos olhos!

Naturalmente é um poeta…

 

Eu mesmo… Eu mesmo, Carnaval…

Eu te levava uns olhos novos

Para serem lapidados em mil sensações bonitas,

Meus lábios murmurejando de comoção assustada

Haviam de ter puríssimo destino…

É que sou poeta

E na banalidade larga dos meus cantos

Fundir-se-ão de mãos dadas alegrias e tristuras, bens e males,

Todas as coisas fnitas

Em rondas aladas sobrenaturais.

Ânsia heróica dos meus sentidos

Pra acordar o segredo de seres e coisas.

Eu colho nos dedos as rédeas que param o infrene das vidas,

Sou o compasso que une todos os compassos

E com a magia dos meus versos

Criando ambientes longínquos e piedosos

Transporto em realidades superiores

A mesquinhez da realidade.

Eu bailo em poemas, multicolorido!

Palhaço! Mago! Louco! Juiz! Criancinha!

Sou dançarino brasileiro!

Sou dançarino e danço! E nos meus passos conscientes

Glorifico a verdade das coisas existentes

Fixando os ecos e as miragens.

Sou um tupi tangendo um alaúde

E a trágica mixórdia dos fenômenos terrestres

Eu celestizo em euritmias soberanas,

Ôh encantamento da Poesia imortal!…

 

Onde que andou minha missão de poeta, Carnaval?

Puxou-me a ventania,

Segundo círculo do Inferno,

Rajadas de confetes

Hálitos diabólicos perfumes

Fazendo relar pelo corpo da gente

Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca.

Milhares de Julietas!

Domitilas fantasiadas de cow-girls,

Isoldas de pijamas bem franceses,

Alsacianas portuguesas holandesas…

Geografa!

Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar!

Levou a breca o destino do poeta,

Barreei meus lábios com o carmim doce dos dela…

Teu amor provinha de desejos irritados,

Irritados como os morros do nascente nas primeiras horas da manhã

Teu beijo era como o grito da araponga.

Me alumeava atordoava com o golpe estridente viril.

Teu abraço era como a noite dormida na rede

Que traz o dia de membros moles mornos de torpor.

Te possuindo, eu me alimentei com o mel dos guapurus,

Mel ácido, mel que não sacia,

Mel que dá sede quando as fontes estão muitas léguas além,

Quando a soalheira é mais desoladora

E o corpo mais exausto.

Carnaval…

Porém nunca tive intenção de escrever sobre ti…

Morreu o poeta e um gramofone escravo

Arranhou discos de sensações…

 

Em baixo do Hotel Avenida em 1923

Na mais pujante civilização do Brasil

Os negros sambando em cadência.

Tão sublime, tão África!

A mais moça bulcão polido ondulações lentas lentamente

Com as arrecadas chispando raios glaucos ouro na luz peluda de pó.

Só as ancas ventre dissolvendo-se em vaivens de ondas em cio.

Termina se benzendo religiosa talqualmente num ritual.

E o bombo gargalhante de tostões.

Sincopa a graça da danada.

II

Na capota franjada com xale chinês

Amor curumim abre as asas de ruim papelão.

Amor abandonou as setas sem prestígio

E se agarra na cinta fecunda da mãe.

Vênus Vitoriosa emerge de ondas crespas serpentinas,

De ondas encapeladas por mexicanos e marqueses cavalgando auto

perseguidores.

– Quero ir para casa, mamãe!

Amor com medo dos desejos…

III

O casal jovem rompendo a multidão.

O bando de mascarados de supetão em bofetadas de confetes na mulher.

– Olhe só a boquinha dela!

– Ria um pouco, beleza!

– Come do meu!

O marido esperou (com paciência) que a esposa se desvencilhasse do bando de máscaras

E lá foram rompendo a multidão.

Ela apertava femininamente contra o seio o braço protetor

do Esposo.

Do esposo recebido ante a imponência catedrática da Lei

E as bênçãos invisíveis – extraviadas? – do Senhor…

Meu Deus…

Onde que jazem suas atrações?

Pra que lados de fora da Terra

Fugiu a paz das naves religiosas

E a calma boa de rezar ao pé da cruz?

Reboa o batuque.

São priscos risadas

São almas farristas

Aos pinchos e guinchos

Cambateando na noite estival.

Pierrots-fêmeas em calções mais estreitos que as pernas,

Gambiarras iluminadas!

Oblatas de confetes no ar,

Incenso e mirra marca Rodo nacional

Açulam raivas de gozar.

 

O cabra enverga fraque de cetim verde no esqueleto.

Magro magro asceta de longos jejuns difcílimos.

Jantou gafanhotos.

E gesticula fala canta.

Prédicas de meu Senhor…

Será que vai enumerar teus pecados e anátemas justos?

A boca dele vai florir de bênçãos e perdões…

Porém de que lados de fora da Terra

Falam agora as tuas prédicas?

Quedê teus padres?

Quedê teus acerbispos purpurinos?

Que dele o tempo em que Felipe Neri

Sem fraque de cetim verde no esqueleto

Agarrava a contar as parábolas lindas

De que os padres não se lembram mais?

Por onde pregam os Sumés de meu Senhor?

Aqueles a quem deixaste a tua Escola

Fingem ignorar que gostamos de parábolas lindas,

E todos nos pusemos sapateando histórias de pecado

Porque não tinha mais histórias pra escutar…

 

Senhor! Deus bom, Deus grande sobre a terra e sobre o mar.

Grande sobre a alegria e o esquecimento humano.

Vem de novo em nosso rancho, Senhor!

Tu que inventaste as asas alvinhas dos anjos

E a figura batuta de Satanás;

Tu, tão humilde e imaginoso

Que permitiste Isis guampuda nos templos do Nilo,

Que indicaste a bandeira triunfal de Dionísio pros gregos

E empinaste Tupã sobre os Andes da América…

 

Aleluia!

Louvemos o Criador com os sons dos saxofones arrastados,

Louvemo-Lo com os salpicos dos xilofones nítidos!

Louvemos o Senhor com os riscos dos recorrecos e os estouros

do tantã,

Louvemo-Lo com a instrumentarada crespa do jazz-band!

Louvemo-Lo com os violões de cordas de tripa e as cordeonas

imigrantes,

Louvemo-Lo com as flautas dos choros mulatos e os

cavaquinhos de serestas ambulantes!

Louvemos o que permanece através das festanças virtuosas e dos gozos

ilegítimos!

Louvemo-Lo sempre e sobre tudo! Louvemo-Lo com todos os

instrumentos e todos os ritmos!…

 

Vem de novo em nosso rancho, Senhor!

Descobrirei no colo dengoso da Serra do Mar

Um derrame no verde mais claro do vale,

Arrebanharei os cordões do carnaval

E pros carlitos marinheiros gigoletes e arlequins

Tu contarás de novo com tua voz que é ver o leite

Essas histórias passadas cheias de bons samaritanos,

Dessas histórias cotubas em que Madalena atapetava com os

[cabelos o teu chão…

…pacapacapacapão!… pacapão! pão! pão!…

Pão e circo!

Roma imperial se escarrapacha no anfteatro da Avenida.

Os bandos passam coloridos,

Gesticulam virgens,

Semivirgens,

Virgens em todas as frações

Num desespero de gozar.

Homens soltos

Mulheres soltas

Mais duas virgens fuxicando o almofadinha

Maridos camaradas

Mães urbanas

Meninos

Meninas

Meninos

O de dois anos dormindo no colo da mãe…

– Não me aperte!

– Desculpe, madama!

Falsetes em desarmonia

Coros luzes serpentinas serpentinas

Matusalém cirandas Breughel

– Diacho!

Sambas bumbos guizos serpentinas, serpentinas…

E a multidão compacta se aglomera aglutina mastiga em

[aproveitamento brincadeiras asfxias desejadas delírios

[sardinhas desmaios

Serpentias serpentinas coros luzes sons

E sons!

Yayá, fruta-do-conde,

Castanha-do-Pará!

O préstito passando.

Bandos de clarins em cavalos fogosos.

Utiaritis aritis assoprando cornetas sagradas.

Fanfarras fanfarrans

fenrerrens

fnfrrins…

Forrobodó de cuia!

Vitória sobre a civilização! Que civilização?… É Baco

 

É Baco num carro feito de ouro e de mulheres

E dez perelhas de bestas imorais,

Tudo aplaude guinchos berros,

E sobre o Etna de loucuras e pólvoras

Os Tenentes do Diabo.

Alegorias, críticas, paródias

Palácios bestas do fundo do mar

Os aluguéis se elevam…

Os senhorios exigentes…

Cães infames! malditos!…

… Eu enxerguei com estes meus olhos que inda a Terra

há de comer

Anteontem as duas mulheres se fantasiando de lágrimas

A mais nova amamentava o esqueletinho.

Quatro barrigudinhos sem infância,

Os trastes sem aconchego

No lar-de-todos da rua…

O Solzão ajudava a apoteose

Com o despejo das cores e calores…

Segue o préstimo numa via-láctea de esplendores.

Presa num palanquim de ônix e pórfro…

Ôta, morena boa!

Os olhos dela têm o verde das florestas,

Todo um Brasil de escravos banzo sensualismos,

Índios nus balanceando na terra das tabas,

Cauim curare cachiri

Cajás… Ariticuns… Pele de Sol!

Minha vontade por você serpentinando…

O préstito se vai.

Os blocos se amontoam me afastando de você…

Passa a Flor do Abacate,

Passa o Miséria e Fome, o Ameno Rosedá…

O préstito se vai…

Você também se foi rindo pros outros,

Senhora dona ingrata

Coberta de ouro e prata…

Esfuzios de risos…

Arrancos de metais…

O schlschlsch monótono das serpentinas…

Monótono das serpentinas…

E a surpresa do fim: Fadiga de gozar.

Claros em torno da gente.

Bolas de fitas de papel rolando pelo chão.

Manchas de asfalto.

Os corpos adquirem de novo as sombras deles.

Tem lugares no bar.

As árvores pousam de novo no chão graciosas ordenadas,

Os palácios começam de novo subindo no céu…

 

Quatro horas da manhã.

Nos clubes nas cavernas

Inda se ondula vagamente no maxixe.

Os corpos se unem mais.

Tem cinzas na escureza indecisa da arraiada.

Já é quarta-feira no Passeio Público.

Numa sanha final

Os varredores carnavalizam as brisas da manhã

Com poeiras perfumadas e cromáticas.

Peri triste sentou na beira da calçada.

O carro-chefe dos Democráticos

Sem a falação do estandarte

Sem vida, sem mulheres

Senil buscando o barracão.

Democraticamente…

Aurora… Tchim! Um farfalhar de plumas áureas no ar.

E as montanhas que nem tribos de guaianás em rapinas

[de luz.

Com seus cocares de penas de tucano.

O poeta se debruça no parapeito de granito.

A rodelinha de confeti cai do chapéu dele,

Vai saracotear ainda no samba mole das ondas.

Então o poeta vai deitar.

Lentamente se acalma no país das lembranças

A invasão furiosa das sensações.

O poeta sente-se mais seu.

E puro pelo contato de si mesmo

Descansa o rosto sobre a mão que escreverá.

Lhe embala o sono

A barulhada matinal de Guanabara…

Sinos buzinas clácsons campainhas

Apitos de oficinas

Motores bondes pregões no ar,

Carroças da rua, transatlânticos no mar…

É a cantiga-de-berço.

E o poeta dorme.

O poeta dorme sem necessidadCarnaval Carioca

 

A fornalha estrala em mascarados cheiros silvos

Bulhas de cor bruta aos trambolhões

Setins sedas cassas fundidas no riso febril…

Brasil!

Rio de Janeiro!

Queimadas de verão!

E ao longe, do tição do Corcovado a fumarada das nuvens pelo céu.

 

Carnaval…

Minha frieza de paulista

Policiamentos interiores,

Temores da exceção…

E o excesso goitacá pardo selvagem!

Cafrarias desabaladas

Ruínas de linhas puras

Um negro dois brancos três mulatos, despudores…

O animal desembesta aos botes pinotes desengonços

No heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural.

 

Tremi de frio nos meus preconceitos eruditos

Ante o sangue ardendo do povo chiba frêmito e clangor

Risadas e danças

Batuques maxixes

Jeitos de micos piricicas

Ditos pesados, graça popular…

Ris? Todos riem…

 

O indivíduo é caixeiro de armarinho na Gamboa.

Cama de ferro curta por demais,

Espelho mentiroso de mascate

E no cabide roupas lustrosas demais…

Dança uma joça repinicada

De gestos pinchando ridículos no ar.

Corpo gordo que nem matrona

Rebolando embolado nas saias baianas,

Braço de fora, pelanca pulando no espaço

E no decote cabeludo cascavéis sacoteando

Desritmando a forçura dos músculos viris.

Fantasiou-se de baiana,

A Baía é boa terra…

Está feliz.

 

Entoa atoa a toada safada

E no escuro da boca banguela

O halo dos beiços de carmim.

Vibrações em redor.

Pinhos gargalhadas assobios

Mulatos remeleixos e buduns.

Palmas. Pandeiros – Aí, baiana!

Baiana do coração!

Serpentinas que saltam dos autos em monóculos curiosos,

Este cachorro espavorido

Guarda-civil indiferente,

Fiscalizemos as piruetas…

Então só eu que vi?

Risos. Tudo aplaude. Tudo canta:

– Aí, baiana faceira,

Baiana do coração!

Ele tinha os beiços sonoros beijando se rindo

Uma ruga esquecida uma ruga longínqua

Como esgar duma angústia indistinta ignorante…

Só eu pude gozá-la.

E talvez a cama de ferro curta por demais…

 

Carnaval…

A baiana se foi na religião do Carnaval

Como quem cumpre uma promessa.

Todos cumprem suas promessas de gozar.

Explodem roncos roucos trilos tchique-tchiques

E o falsete enguia esguia rebejando pelo aquário multicor

Cordões de machos mulherizados,

Ingleses evadidos de pruderie,

Argentinos mascarando a admiração com desdéns superiores

 

Desgringolando em lenga-lenga de milonga,

Polacas de indiscutível índole nagô,

Yankees fantasiados de norteamericanos…

Coiozada emproada se aturdindo turtuveando

Entre os carnavalescos de verdade

Que pererecam pararacas em derengues meneios cantigas,[chinfrim de gozar!

 

Tem outra raça ainda.

O mocinho vai fuçando o manacá naturalizado espanhola.

Ela se deixa bolinar na multidão compacta.

Por engano.

Quando aproximam dos policiais

Como ela é pura conversando com as amigas!

Pobre do solitário com chapéu caicai nos olhos!

Naturalmente é um poeta…

 

Eu mesmo… Eu mesmo, Carnaval…

Eu te levava uns olhos novos

Para serem lapidados em mil sensações bonitas,

Meus lábios murmurejando de comoção assustada

Haviam de ter puríssimo destino…

É que sou poeta

E na banalidade larga dos meus cantos

Fundir-se-ão de mãos dadas alegrias e tristuras, bens e males,

Todas as coisas fnitas

Em rondas aladas sobrenaturais.

 

Ânsia heróica dos meus sentidos

Pra acordar o segredo de seres e coisas.

Eu colho nos dedos as rédeas que param o infrene das vidas,

Sou o compasso que une todos os compassos

E com a magia dos meus versos

Criando ambientes longínquos e piedosos

Transporto em realidades superiores

A mesquinhez da realidade.

Eu bailo em poemas, multicolorido!

Palhaço! Mago! Louco! Juiz! Criancinha!

Sou dançarino brasileiro!

Sou dançarino e danço! E nos meus passos conscientes

Glorifico a verdade das coisas existentes

Fixando os ecos e as miragens.

Sou um tupi tangendo um alaúde

E a trágica mixórdia dos fenômenos terrestres

Eu celestizo em euritmias soberanas,

Ôh encantamento da Poesia imortal!…

 

Onde que andou minha missão de poeta, Carnaval?

Puxou-me a ventania,

Segundo círculo do Inferno,

Rajadas de confetes

Hálitos diabólicos perfumes

Fazendo relar pelo corpo da gente

Semíramis Marília Helena Cleópatra e Francesca.

Milhares de Julietas!

Domitilas fantasiadas de cow-girls,

Isoldas de pijamas bem franceses,

Alsacianas portuguesas holandesas…

Geografa!

Êh liberdade! Pagodeira grossa! É bom gozar!

Levou a breca o destino do poeta,

Barreei meus lábios com o carmim doce dos dela…

Teu amor provinha de desejos irritados,

Irritados como os morros do nascente nas primeiras horas da manhã

Teu beijo era como o grito da araponga.

Me alumeava atordoava com o golpe estridente viril.

Teu abraço era como a noite dormida na rede

Que traz o dia de membros moles mornos de torpor.

Te possuindo, eu me alimentei com o mel dos guapurus,

Mel ácido, mel que não sacia,

Mel que dá sede quando as fontes estão muitas léguas além,

Quando a soalheira é mais desoladora

E o corpo mais exausto.

Carnaval…

Porém nunca tive intenção de escrever sobre ti…

Morreu o poeta e um gramofone escravo

Arranhou discos de sensações…

I

Em baixo do Hotel Avenida em 1923

Na mais pujante civilização do Brasil

Os negros sambando em cadência.

Tão sublime, tão África!

A mais moça bulcão polido ondulações lentas lentamente

Com as arrecadas chispando raios glaucos ouro na luz peluda de pó.

Só as ancas ventre dissolvendo-se em vaivens de ondas em cio.

Termina se benzendo religiosa talqualmente num ritual.

E o bombo gargalhante de tostões.

Sincopa a graça da danada.

II

Na capota franjada com xale chinês

Amor curumim abre as asas de ruim papelão.

Amor abandonou as setas sem prestígio

E se agarra na cinta fecunda da mãe.

Vênus Vitoriosa emerge de ondas crespas serpentinas,

De ondas encapeladas por mexicanos e marqueses cavalgando auto perseguidores.

– Quero ir para casa, mamãe!

Amor com medo dos desejos…

III

O casal jovem rompendo a multidão.

O bando de mascarados de supetão em bofetadas de confetes na mulher.

– Olhe só a boquinha dela!

– Ria um pouco, beleza!

– Come do meu!

O marido esperou (com paciência) que a esposa se desvencilhasse do bando de máscaras

E lá foram rompendo a multidão.

Ela apertava femininamente contra o seio o braço protetor

do Esposo.

Do esposo recebido ante a imponência catedrática da Lei

E as bênçãos invisíveis – extraviadas? – do Senhor…

Meu Deus…

Onde que jazem suas atrações?

Pra que lados de fora da Terra

Fugiu a paz das naves religiosas

E a calma boa de rezar ao pé da cruz?

Reboa o batuque.

São priscos risadas

São almas farristas

Aos pinchos e guinchos

Cambateando na noite estival.

Pierrots-fêmeas em calções mais estreitos que as pernas,

Gambiarras iluminadas!

Oblatas de confetes no ar,

Incenso e mirra marca Rodo nacional

Açulam raivas de gozar.

 

O cabra enverga fraque de cetim verde no esqueleto.

Magro magro asceta de longos jejuns difcílimos.

Jantou gafanhotos.

E gesticula fala canta.

Prédicas de meu Senhor…

Será que vai enumerar teus pecados e anátemas justos?

A boca dele vai florir de bênçãos e perdões…

Porém de que lados de fora da Terra

Falam agora as tuas prédicas?

Quedê teus padres?

Quedê teus acerbispos purpurinos?

Quedele o tempo em que Felipe Neri

Sem fraque de cetim verde no esqueleto

Agarrava a contar as parábolas lindas

De que os padres não se lembram mais?

Por onde pregam os Sumés de meu Senhor?

Aqueles a quem deixaste a tua Escola

Fingem ignorar que gostamos de parábolas lindas,

E todos nos pusemos sapateando histórias de pecado

Porque não tinha mais histórias pra escutar…

 

Senhor! Deus bom, Deus grande sobre a terra e sobre o mar.

Grande sobre a alegria e o esquecimento humano.

Vem de novo em nosso rancho, Senhor!

Tu que inventaste as asas alvinhas dos anjos

E a fgura batuta de Satanás;

Tu, tão humilde e imaginoso

Que permitiste Isis guampuda nos templos do Nilo,

Que indicaste a bandeira triunfal de Dionísio pros gregos

E empinaste Tupã sobre os Andes da América…

Aleluia!

Louvemos o Criador com os sons dos saxofones arrastados,

Louvemo-Lo com os salpicos dos xilofones nítidos!

Louvemos o Senhor com os riscos dos recorrecos e os estouros

do tantã,

Louvemo-Lo com a instrumentarada crespa do jazz-band!

Louvemo-Lo com os violões de cordas de tripa e as cordeonas

imigrantes,

Louvemo-Lo com as flautas dos choros mulatos e os

cavaquinhos de serestas ambulantes!

Louvemos O que permanece através das festanças virtuosas e dos gozos

ilegítimos!

Louvemo-Lo sempre e sobre tudo! Louvemo-Lo com todos os

instrumentos e todos os ritmos!…

Mario e Oswald

Edição, Don Oleari – [email protected]

https://www.facebook.com/oswaldo.oleariouoleare

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Don Oleari - Editor Chefão

Radialista, Jornalista, Publicitário.
Don Oleari Corporeitcham