Um delicado edifício
1 Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo tal como foi efetivamente, mas, sobretudo, apropriar-se de uma reminiscência tal como brilha no instante do perigo” (Walter Benjamim).
COLUNA AQUI PRAIA DO CANTO | VITÓRIA/ES
KLEBER FRIZZERA
Um pequeno e singelo edifício, originalmente de uso residencial, mantido na sua originalidade, espera, pacientemente, a sua demolição, substituído por um condomínio como os outros que colonizaram a Praia do Canto.
Sobrevivência de uma outra época, não tão distante, quando a ocupação multi-familiar do bairro se fez por edificações de dois a três andares, onde jovens casais ensaiavam uma moradia no Novo Arrabalde, usufruindo da praia e da suavidade refrescante do vento nordeste.
O solar Maria de Lourdes não conseguira resistir às denominações mais sofisticadas e às narrativas mercantis que assentam as atuais edificações.
Uma face simétrica e uma entrada em frontão destacam as quatro unidades, com suas varandas com parapeitos que preservam a intimidade e de uma altura confortável para recostados, apreciar o tempo, a rua e os lentos transeuntes, jovens a caminho do colégio Sacre Coeur, casais se movimentando para as festas no Iate Club ou admirar famílias indo, no domingo, desfrutar um banho de mar.
O telhado em telhas de barro, quatro águas, francesas, simula uma casa individual, de feição neocolonial burguesa e seu longo balanço investe de sombras ao calor da tarde, impõem uma harmonia na horizontalidade na fachada, hoje atravessada pelos verticais vizinhos.
Sem muros ou grades que o separam das calçadas, ficamos logo íntimos de sua proximidade, podendo trocar gestos e palavras gentis com eventuais moradores que se debruçam ao estrangeiro passante.
“As coisas que tiveram o seu tempo não pertencem simplesmente a um passado concluído”, escreve Georges Didi-Huberman, e conforme Walter Benjamin, “tornaram-se receptáculos inesgotáveis de lembranças”, matéria a sobrevivências.
Vestígios, pequenos restos, detalhes particulares de uma modesta configuração estética, emitem sinais e sintomas de seus fantasmas, os retornam ao presente, e nos faz “apropriar-se de uma reminiscência tal como brilha no instante do perigo”.
A sua permanência, instalada no sitio urbano, delicada construção, traz à tona, visível, o despertar do passado, ainda que latente, revela a memória superposta e ilumina as lembranças que resistem à suas desaparições e que informam um futuro esgotado.
“Valerá uma lágrima, valerá uma hora, Pensar-se nas coisas já exauridas? No joio inútil e na fugitiva flor, No sonho passado e na ação extinta?” (Swinburne).
Kleber Frizzera
Novembro 2024
Um delicado edifício
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