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Rubens Pontes: Convento da Penha, marco imperecível de uma conquista territorial e humana | 28/1

Convento

Convento

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Rubens Pontes

 

AQUI RUBENS PONTES

MEUS POEMAS DE SÁBADO

Foto de capa: Tadeu Bianconi

Quase dois meses afastado das chamadas lides profissionais por motivo de força maior, volto ao Portal Don Oleari estimulado pelo Editor Chefão que me encaminhou subsídios sobre os Estados brasileiros, sua população e com eles anotações sobre o Espírito Santo.

Valho-me deles para, confessando ainda certa timidez diante da tarefa, oferecer ao eventual leitor da Coluna anotações sobre a Capitania do Espírito Santo e a demarrage de desenvolvimento alcançada pelo esforço do seu primeiro donatário.

Segundo pesquisa do IBGE, divulgada há cerca de uma década, a população brasileira ultrapassou a barreira dos 200 milhões de habitantes, projetada em 2021 para 214,3 milhões .

São Paulo é o Estado mais populoso, com crescimento acelerado, enquanto Roraima é o que menos cresce em termos de população.

No total por região, o Sudeste possui 84.465.579 de habitantes, o Nordeste 55.794.694, o Sul 28.795.762, o Norte 16.983.485 e o Centro-Oeste 11.814.376.

Os 5 Estados mais populosos:

1° São Paulo 43.663.672

2° Minas Gerais 20.593.366

3° Rio de Janeiro 16.369.178

4° Bahia 15.044.127

5° Rio Grande do Sul 11.164.050

( Fonte: Imprensa Nacional)

O Espírito Santo, segundo o IBGE, abriga uma população de 4.108.508 de habitantes. A estimativa com o total de habitantes dos estados brasileiros se refere a 1° de julho de 2021

Os municípios da Serra (546,4 mil), Vila Velha (493,2 mil), Cariacica (375 mil), Vitória (331,7 mil) e Viana (71,4 mil) são os cinco municípios mais populosos.

Essa citação nos remete ao nosso Estado que se projeta no cenário brasileiro menos por sua pequena população do que por sua significativa participação na formação da História brasileira no campo de sua formatação geográfica, de sua produção de riquezas e da sua extraordinária presença nos mais altos círculos da inteligência criativa – cientistas, pensadores, poetas, cronistas, romancistas.

Tudo começou quando o desbravador português Vasco Coutinho desembarcou de sua nave de velas triangulares no dia 23 de maio de l535 na prainha de Vila Velha.Fundado o primeiro povoamento numa oitava  de Pentecostes, foi-lhe dada a denominação que venceu tempos imemoriais – Espírito Santo.

Vasco Coutinho dividiu o território em sesmaria com os 60 colonizadores que com ele desembarcaram na terra desconhecida e sobre cujos ombros e mãos calejadas devemos a construção dos primeiros engenhos de açúcar e mais tarde a plantação de cafezais, nossa grande riqueza durante mais de 300 anos.

 convento_p13-1.jpgO Colunista faz um parêntesis numa narrativa conhecida e reconhecida para superar pequeno espaço de tempo e nos determos em frei Pedro Palácios.

Convento

Em 1558, com sua abordagem em terras nossas, foi por ele fundado e ainda hoje o mais importante monumento religioso do Espírito Santo: o Convento da Penha, reverência da fé cristã em sua padroeira, Nossa Senhora da Penha.

A escritora contemporânea Sandra Moreira (in “Espírito Santo – um estado singular”) destaca a atuação do donatário Vasco Coutinho com obras importantes como a construção de duas vilas, das igrejas do Rosário e de São João, ambas em Vila Velha, e orientado pelo padre Afonso Brás, em 1551, o Colégio e Igreja São Tiago transformado, após sucessivas reformas, no Palácio Anchieta, sede do Governo do Estado.”

O Colunista encerra este pequeno capítulo da fascinante História do Espírito Santo rendendo homenagem aos irmãos portugueses que romperam barreiras para implantar do lado de cá do Oceano então conquistado importante polo civilizatório.

E ao Convento da Penha, padroeiro do Espírito Santo, com o poema por ele inspirado e absolutamente atual quase 500 anos depois de sua construção.

Abençoando, desde o alto do Penedo, os capixabas nativos e os capixabas por opção.

Rubens Pontes, jornalista

Capim Branco, MG

COMO E PORQUE O POEMA CONVENTO DA PENHA

“Narração dos mais espantosos e extraordinários milagres de Nossa Senhora da Penha, venerada na Província do Espírito Santo, e em todas as partes do Brasil, por Domingos de Caldas, natural da Bahia, dado à luz por Inácio Félix de Alvarenga Sales, natural da Província do Espírito Santo, Padre Mestre Jubilado, Arcipreste e Vigário da Vara, etc., etc., 1854”.

Ilmo. e Revmo. Sr. Bispo Conde e Capelão-mor.

Com a publicidade do presente “Poema Mariano”, assim intitulado pelo seu autor Domingos de Caldas, natural da cidade de Bahia, segundo me afirmam pessoas de grande crédito, nada mais desejo do que fazer brilhar o estro de um brasileiro, que no ano de 1770 empreendeu tão árdua e louvável tarefa.

Depois de algumas diligências pude conseguir um caderno tão mal escrito, que apesar dos esforços que fiz para corrigi-lo, conheço ainda terá defeitos, que só um literato completo, como V. Ex., poderá emendar. Se realizarem-se estas esperanças, que ansiosamente nutro, terei a fortuna de ver cada vez mais engrandecidos os louvores da Virgem Santíssima da Penha, elogiado o seu autor, e felizmente recompensadas as fadigas de quem se confessa de V. Ex. Revma. o mais humilde e reverente súdito

Padre Inácio Félix de Alvarenga Sales.

POEMA MARIANO

A milagrosa Penha se descreve,

E os elementos todos conjurados;

A mais brilhante luz, mais branca neve,

Vai visitar os seus advogados.

O holandês à vila não se atreve,

Foge, rouba os tesouros consagrados:

No dia, em que esta Aurora se festeja,

Grandes prodígios faz na sua igreja.

Eu sou aquele que cantando amores

Muitas vezes ao som das doces canas

Lisonjeei a vida dos pastores,

Exaltei a beleza das serranas;

Porém hoje depondo os seus louvores,

Já não quero cantar glórias mundanas,

Que são sombras da luz, do ar assento,

Formosuras de flor, torres de vento.

II

Cante Homero de Aquiles as vitórias,

E Virgílio de Augusto o grande império,

Ovídio fabulize vãs histórias,

E repreenda Horácio o vitupério,

Que eu cantarei mais ínclitas memórias,

Maravilha maior, maior mistério,

Se pode engrandecer em metro puro

Outro mais claro sol meu estro escuro.

III

Vós, soberana estrela matutina,

Que sois musa melhor, mais bela fonte,

Que os angélicos coros predomina,

Que as plantas rega do sagrado monte,

Dai-me na humana voz graça divina,

P’ra que o vosso poder de modo conte

Que se acredite em tão distinta norma,

Igual vossa matéria à minha forma.

IV

Não repareis no vil deste instrumento,

Atendei só às veras de um desejo;

Pois que também do ouro o luzimento

Nas entranhas da terra oculto vejo;

Não vos consagro, não, do entendimento

Os dotes, que tenho, antes com pejo

Só vos dedico em tal simplicidade

Afeto, devoção, glória e vontade.

V

E se nisto não sou tão veemente,

Quanto merecem vossas excelências,

Da vossa pura graça a grossa enchente

Cubra o campo das minhas indigências,

P’ra que cheio de amor, e zelo ardente,

Tanto publique as vossas preeminências,

Que possa conceber pelo meu canto

Glória ao céu, gosto à terra, ao inferno espanto.

VI

À costa ocidental americana,

Que do antártico polo é mais vizinha,

E o nome Brasil sustenta ufana,

Não o de Santa Cruz, que dantes tinha

Entre o Tupi infiel, gente inumana,

Estão sessenta graus ao sul da linha

Duas vilas chamadas com vanglória,

Uma Espírito Santo, outra Vitória.

VII

Estende o mar um braço pela terra,

Que porto faz à tal capitania,

E como grossas veias nele encerra

Grandes ilhas de tosca pedraria;

Desde o rio — Jucu da rica serra,

E outro com o santo nome de Maria,

Que expiado dos mais insanos ritos,

Vem correndo a pagar os seus delitos.

VIII

Uma comprida légua está distante

A vila da Vitória, celebrada,

Da outra, que se vê menos possante

Ficar junto da barra edificada;

Duas penhas de altura exorbitante,

Uma coberta, e outra descalvada

A entrada defendendo atemorizam

Quantas quilhas no mar soberbas pisam.

IX

Se os bárbaros Tifeu inda viveram,

E ao seu fingido Jove guerrearam,

Nem tão vastas idéias empreenderam,

Nem tão compridos montes abalaram;

Se em um destes penhascos se puseram,

Por certo de improviso ao céu chegaram

Sem precisar de guerra em tanta lida

Do Pólion, Etna, Ossa, Olimpo e Ida.

X

Quantos hoje Tifeus mais fementidos,

Contra o vivo Tonante sublevados,

Só por subir a penha endurecidos

Conseguem ser por Deuses numerados!

E não do Etna em forjas consumidos,

Porém do Olimpo em glória colocados,

Transformam-se em Mercúrios de eloqüência,

Para eterno louvor da Onipotência.

XI

Nesta, que digo, penha descoberta

Majestoso edifício se oferece,

Que pela imensa altura à vista incerta

Guarnecido castelo se parece;

Mas neste mesmo engano a vista acerta,

Porque, como direi, e é bem confesse,

Do inimigo defende em qualquer guerra

A fé, a devoção, o rei da terra.

XII

Essa torre de Faro esclarecida,

Esse de Éfeso templo, assombro humano,

O colosso da Ilha a Grécia unida,

O famoso Obelisco de Trajano,

A máquina do Egito engrandecida,

O palácio de Ciro soberano,

E o mausoléu de tanta arquitetura,

São confusos borrões desta pintura.

XIII

A escarpada penha não consente,

Que por ela se dê nenhum só passo;

Porque o temor da queda prominente

Ao toque mais sutil põe embaraço.

Só por uma ladeira sobe a gente,

Que igual à devoção faz o cansaço;

Talvez porque se entenda, que a virtude

Dano do corpo é, d’alma saúde.

XIV

No meio desta pois em largo assento

Há casas de romeiros bem compostas,

Tendo em duas capelas aposento

São Francisco, e Jesus com a Cruz às costas;

Subindo mais da mesma ao firmamento,

Várias cruzes por ela estão dispostas,

P’ra que os passos fiéis, que ali não cessam,

Nelas pelos de Cristo se ofereçam.

XV

Por compridas escadas vai-se ao cume:

Um templo tem findado na eminência

Daquele imaculado e sacro lume,

Esposa, Filha, e Mãe da Onipotência;

Sem que jamais a vista por costume

Se farte em ver, que tal magnificência

Sem alicerce algum esteja altiva

No empinado penhasco, e rocha viva.

XVI

No alpendre por colunas sustentado

Uma rica portada se conserva,

E logo dentro em coro levantado,

Que para orar a Deus só se reserva;

Aqui mesmo o Senhor crucificado

De qualquer pecador a vista observa;

Pois sendo imagem só para lembrança

É puro original, não semelhança.

XVII

Um púlpito com dous colaterais

Altares de belíssima escultura,

Na forma, e na matéria ambos iguais,

São próprio cedro em si, mármore em figura,

Parece que chegar não pode a mais

O primor d’arte, a força da pintura;

Pois tanto à pura vista a idéia engana,

Que nem o mesmo tato desengana.

XVIII

Da porta da verdade pura e santa

A seu autor a vista humana goza

No paço de — Ecce Homo —, e junto espanta

De Benedito a efígie primorosa;

Da outra em uma imagem sacrossanta

Duas mães, uma filha, avó, e esposa,

Na qual, contendo igual delicadeza,

Quis a arte poder mais que a natureza.

XIX

O espaçoso teto representa

O campo de Amaltéia, o ser de Flora,

A primavera está do templo exempta,

Eterna vida e cor nas flores mora;

Levantado relevo a vista aumenta,

Primoroso lavor a luz namora,

Esquecendo-se aqui dos operantes

Fídias, Apeles, Zêuxis, e Timantes.

XX

Do arco para dentro igual respeito

A abóbada requer da mór-capela,

Onde mais por milagre existe o efeito

Do zimbório, que os ventos atropela;

O altar-mor de pedra é todo feito

Branca, vermelha, azul e amarela,

Tendo da mesma espécie iguais alunas

Figuras, festões, tarjas e colunas.

XXI

Em nítidos degraus d’ouro lavrados

Se vê de um vasto trono o luzimento,

Em que nos dias mais qualificados

Em custódia se expõe o Sacramento.

Em pirâmide igual de ambos os lados

Estão Francisco, Antônio igual portento,

Que protótipos são da santidade,

Pobreza, obediência e castidade.

XXII

Bem no centro do altar em nicho nobre,

Guarnecido de flores e cortinas,

A soberana Virgem se descobre

Mais bela, que as estrelas diamantinas,

Um transparente véu não bem a cobre;

Pois nunca ocultas são luzes divinas,

Tendo nas pias mãos o filho puro,

Sol que o dia rompeu do céu escuro.

XXIII

Mas ah! Onde vou eu indigno humano?

Oh cega musa, oh louca fantasia!

Como se atreve um rústico profano

A descrever a imagem de Maria!?

Se ainda para um Augusto um Mantuano

Uma língua de ferro apetecia,

Que musa, idéia e voz pede a Senhora

Se quanto esconde o céu na terra mora?

XXIV

Eu bem conheço enfim, que em vão prossigo,

Que o mesmo mundo em línguas transformado

Pouco havia dizer mais, do que eu digo;

Faria o canto sim mais concertado;

Mas pode a devoção tanto comigo,

Que me faz empreender mui confiado

O maior impossível do universo,

Para em metro dizer, cantar em verso.

XXV

Vós, rainha de excelsa majestade,

Da terra auxiliatriz, do céu regente,

Que sois lince melhor duma vontade,

Do humano coração mestra ciente,

Bem conheceis, que em mim não há vaidade;

Um desejo eficaz tenho somente

De que sem recompensa e sem vanglória

Aumente a minha pena a vossa glória.

XXVI

Em três palmos e meio de estatura

Representa a Senhora um vulto inteiro,

Seu mistério dos ditos se procura,

Três pessoas, e um só Deus verdadeiro.

A sua soberana formosura

Do pecador liberta o cativeiro,

E faz que o coração do duro peito

Pelos olhos com dor saia desfeito.

XXVII

Ricos vestidos de brocado e tela

São ornamento seu sempre diário,

Tendo no peito, e colo a aurora bela,

De ouro uma cadeia e um rosário.

Cento e vinte fuzis se contam nela,

Rematados de um rico relicário;

Nele se vê que o peso a tanto monta,

Que inda é mais um mistério a não ter conta.

XXVIII

Coberto o lindo peito de diamantes,

De filigrana d’ouro guarnecidos,

Matizado de pedras mui brilhantes,

Salpicado de aljôfares subidos,

Chegam à sacra fronte rutilantes;

E ainda encobre alguns dos mais luzidos

A coroa, que d’ouro às libras pesa,

Sendo maior a obra, que a riqueza.

XXIX

Tem mais de peças mil sobresselentes

De não menor grandeza e qualidade,

Que de vários países, várias gentes

Lhe dão com devoção, gosto e vontade.

Por muitas dão-se até dobras correntes;

Porém nunca parece a quantidade,

Parecendo se oculta a algum patolo,

Que de tudo faz ser metal de Apolo.

XXX

Porém a sacra Virgem lhe compensa

Com benefícios tão avantajados,

Que quanto mais se empenha a recompensa,

Mais ficam seus devotos obrigados:

Da peste, fome, guerra e toda a ofensa

Ela continuamente os põe livrados,

Tirando o arbítrio ao tempo, à parca[ o ofício

O raio a Délio, a Marte o exercício.

XXXI

O contíguo convento franciscano

Tem três sobrados de elevada altura,

Em que para o exercício soberano

Dos sagrados varões mora a candura.

A máquina não sente o menor dano,

E com razão parece eterna dura;

Pois do calvo Saturno o grande império

Não tem poder algum no assento etéreo.

XXXII

Vendo que tanto peso já tal penha

Não pode ter nos ombros sustentada,

E ofendido de ver que a mesma tenha

A inviolável luz mais bem guardada,

No maior terremoto mais se empenha

Para a pôr destruída, e derribada:

Mais tirano a reinar em vão procura

O cenóbio vital da Virgem pura.

XXXIII

Inda em sessenta e nove o sol girava

Visitando o Leão, que atroz rugia,

Tendo no Augusto mês, que começava,

Uma só vez mostrado a luz do dia:

Morfeu os doces laços apertava;

O mar, o vento, o céu adormecia,

Quando a terra com grito assaz ingente

Desperta os animais, acorda a gente.

XXXIV

Principia o tremor no monte e vale;

Aumenta a confusão da morte o susto;

Pedra e tronco não há, que não se abale,

Sendo o dano maior no mais robusto:

Agora só o assombro é bem que fale,

E se emudeça a voz no espanto justo,

Vendo ficar cessando o infausto indício,

Constante a pedra, imóvel o edifício

Também soberbo Eolo ou de invejoso,

Ou irado, por ver contrário culto,

Combatendo este monte portentoso,

Não faz no longo mar tão grande insulto.

Treme o sagrado templo temeroso,

E a não o defender mistério oculto,

Com fúria tão cruel, tão fero arrojo,

Fora a pedra maior menor despojo.

XXXVI

Netuno indignado as nuvens farta

Para lograr seus bárbaros intentos;

As quais, passando logo à esfera quarta,

Formam no ar escuro pavimento.

Das mesmas para o mar água se aparta

Por baixo dos mais firmes fundamentos,

Sem que as constantes bases prevariquem,

Antes na inundação mais fortes fiquem.

XXXVII

Tonante com rigor fero e tirano,

No sacro cume da elevada penha

Arroja os artifícios de Vulcano,

Dos quais o estrondo a fúria desempenha;

Isto é certa pensão de qualquer ano,

Sem que perigo algum a igreja tenha,

E somente se vê na gente insana

O natural temor da vida humana.

XXXVIII

Muitos com raro assombro têm passado

Por entre a Virgem mãe, e o seu Menino;

Outros têm não sem dano procurado

Ao Senhor — Ecce Homo —, autor divino:

Olha, triste mortal, quão descuidado

Continuas teu louco desatino,

Sem ver, que, quando a si Deus se condena,

Mostra de tua culpa a sua pena.

XXXIX

Vê que nem sua mãe já se reserva,

A qual do nosso dano ressentida,

No raio que a conhece, e que a preserva,

Golpe não encontrou, e está ferida:

Por seus rogos repara, atento observa,

Que a Onipotência quis ser ofendida,

Mostrando no infalível do castigo

Custar nosso perdão o seu perigo.

XL

Confunde-te pois, cego entendimento,

Faze desse prazer pesar amargo;

Porque essa horrenda voz do firmamento

Procura despertar o teu letargo:

Agradece o milagre a tal portento;

Que à sentença final põe tanto embargo,

Por não sentires um e outro inferno

Do raio, temporal, o fogo eterno.

XLI

Também a mesma Circe encantadora

Por Ulisses contrária aos portugueses,

Do seu sossego aqui perturbadora,

Infecciona o ar algumas vezes:

Peita a Pomona, Ceres e mais Flora,

Para a gente ofender, matar as reses,

Sem que possa no mal da idéia ignoto

Esculápio vencer a horrenda Cloto.

XLII

O fogo material de Febo ardente,

Que da tórrida zona incende a esfera,

Mais que da Líbia adusta, e Arábia quente,

Neste país seus raios reverbera.

O excessivo calor abrasa a gente;

Acende o campo, o gado desespera,

E parece que quer este elemento

Fazer no alheio espaço o próprio assento.

XLIII

Desce do monte ao mar o feroz bruto,

Que antes morrer nas praias determina,

A Berecíntia mãe esconde o fruto;

Falta o pão, morre a flor, seca a campina;

Tudo é dor, confusão, pobreza, e luto,

Vendo tão perto a última ruína,

Todos são Prometeus no sentimento;

Pois de Tântalo têm o vil tormento.

XLIV

Vê-se o faminto monstro furibundo,

Que tem mais de cem bocas sempre abertas,

Tendo na cútis fraca, e o corpo imundo,

Ossos, nervos e veias descobertas;

Os olhos das caveiras no profundo

Parecem do sertão covas desertas,

Nas secas faces as medonhas caras

Mais que de pomos, são de gosto avaras.

XLV

Observa-se porém ao pé do monte

Atlântico do céu mais refulgente

Estar viçosa a flor, corrente a fonte,

Firme a saúde, a dita permanente;

Sem que faça calor, qual o dia afronte;

Sem que a peste infeliz oprima a gente;

Porque dela lhe dá contra o seguro

Deste sacro Sião cipreste puro.

XLVI

Motivo por que a vila da Vitória,

À do Espírito Santo roga e pede,

Que por um dia só quer ter a glória

Do imaculado bem, que ao mal impede.

Depois que a petição se faz notória,

Por um despacho a dita se concede,

Escrituras, fiança, e todo o excesso

Por um tesouro tal, qual não tem preço.

XLVII

Entram as grandes quilhas na contenda

De qual merece ser a conducente,

E precisa o juiz, sem que as ofenda,

Ser menos justiceiro que prudente.

Qual por levá-la dá toda a fazenda;

Qual se empenha rogando a toda gente;

Pois a que chega a ter tão feliz sorte,

Despreza a vida, o vento, o mar, e a morte.

XLVIII

Ricamente se apresta a vencedora,

Coberta de damascos importantes,

Fingindo mil festões da bela Flora,

De luzentes cristais, jóias brilhantes,

Figuras, invenções, se vêem por fora,

E por cima bandeiras tremulantes,

Trazendo de Anfião doce harmonia,

E de Marte a esforçada artilheria.

XLIX

Não é menor nas mais a diligência,

Sendo igualmente a pompa procurada,

E havendo devota competência

De qual se encontrará mais bem ornada.

A idéia desempenha a veemência;

Fica a mente com a vista arrebatada,

Sem fartar-se apesar de que Argos seja;

Porque quanto mais vê, mais ver deseja.

L

Qual bordada de seda se apresenta;

Qual linda primavera se afigura;

Um sombrio bosque representa;

Ouára se forma em grave arquitetura;

Está só com um castelo se contenta;

Aquela esgota as tintas da pintura;

Admirando o leão da novidade,

Menos a multidão, que a claridade.

LI

Vistes o longo rasto das formigas

Pelo espaçoso chão multiplicado,

Que por serem das chamas inimigas,

Desertam do lugar delas tomado;

E buscam, porque são do doce amigas,

Do grande engenho o mel açucarado,

Tornando carregadas e contentes

A buscar da pousada as cinzas quentes?

LII

Assim as proas vêm aves nadantes

Fazendo pelo mar rua vistosa,

Que fugindo dos raios rutilantes,

Buscam da penha a fábrica engenhosa.

Dali com devoção levam amantes

A ambrosia mais deliciosa,

E com ela contente já navegam

Aos sítios naturais, que ainda fumegam.

LIII

Porém logo toda esta comitiva,

Em movente cidade se transforma,

Disputando na vista, e glória altiva

A pompa de Paris, de Roma a forma;

Palácios de soberba perspectiva,

Obeliscos também da mesma norma;

Torres, pontes, jardins com fausto tanto,

Pasmo da idéia são, da vista espanto.

LIV

Eis que de entre os fiéis habitadores

A pálida tristeza se desterra,

E nos seus aposentos nadadores

A formosa alegria só se encerra.

Já com vozes, com vivas, e clamores

Retumbam de prazer o mar, e a terra,

Causando horror, e susto aos elementos

De bronze o eco ao som dos instrumentos.

LV

As filhas de Nereu,formosas damas,

Meios corpos mostrando umedecidos,

E as caudas, que têm duras escamas,

No líquido cristal tendo escondidas,

Sentem da ardente raiva as vivas chamas;

Porque outras vozes] são no mar ouvidas,

E entram a cantar ao desafio,

Para depois vingar na presa o brio.

LVI

As úmidas gargantas apuradas

Também os doces ecos vão formando,

Que as águas de prazer ficam paradas,

Os peixes de alegria andam saltando:

E como já das musas desprezadas,

Vencidas dos Orfeus, que estão cantando,

Arrojam-se às profundas do Oceano,

Levando na vergonha o desengano.

LVII

Ao rouco som de grossa artilheria

O argentado nume aparece,

E com toda a espumante companhia

A vista sobre as ondas se oferece

A fronte carregada, e luzidia,

Medonha trovoada só parece;

Cada olho um funil, a boca um forno,

Um madeiro o nariz, o queixo um corno.

LVIII

De um triunfante carro de espadanas

Puxado por dous monstros animados,

Em trono vem de lisas barbatanas,

Guarnecido de brutos escumados,

Por timbre das empresas desumanas,

Traz soberbos navios destroçados,

Em que os tristes naufrágios representa,

Dos quais seu grande reino se sustenta.

LIX

Ao seu lado Anfitrite majestosa,

De nítidos cristais toda adornada,

Vestida da melhor seda limosa,

De claros pingos d’água bem toucada;

Afogador de fino aljôfar goza, Jóia também de pérolas formada,

Trono de tartaruga, e d’água plumas,

Assento de coral, coxim de espumas.

LX

Vênus de uma ostra marchetada

Seu trono faz no opaco pavimento,

Tendo na concha a ostra inda pegada,

Reluzente espaldar, brilhante assento.

As faces, boca, e cor mais engraçada

Desafiam da aurora o luzimento;

As tranças d’ouro, os olhos cintilantes

São correntes de amor, prisões amantes.

LXI

Tétis, Dóris, Nereu, as ninfas todas,

E os deuses do reino cristalino

Em conchas desiguais de várias modas,

Acompanham também o rei marino.

Dos ossos de baleia as grandes rodas

As águas rompem com rumor ferino,

Deixando atrás os fossos circulares,

Em que à roda se vão reunindo os mares.

LXII

Assim chega-se à frente da sumaca

Do espumante congresso o deus horrendo,

E ferrando o tridente à proa atraca,

Seu contínuo mover parar fazendo.

Salta logo da fauce a voz opaca

Com tão soberbo eco, e som tremendo,

Que o ar enche de horror, e até parece,

Que a mesma firme penha se estremece.

LXIII

E tu, lhe diz, quem és, que assim se atreve

O sossego alterar do meu império?

Como tão longo ardor em corpo breve

De meu poder assusta o magistério?

Ignoras o respeito, que se deve

Das minhas águas ao maior mistério?

Queres que já converta os desvarios

Desses quentes metais em monstros frios?

LXIV

Vê de Ítaca o mesmo autor potente,

E mais seus companheiros esforçados,

Que por não respeitarem meu tridente

Foram de minhas ondas soçobrados,

Dos quais no mesmo arquivo transparente

Inda tenho os despojos encerrados;

E eles foram parar sem vela e remo

Ao tirano poder de Polifemo.

LXV

Já tenho compaixão do grande estrago,

Que faço nos ousados portugueses;

Da minha habitação no sítio vago

Já não cabem seus ínclitos arneses.

E tu, sem ponderar tanto pressago,

Vendo sem conta o mal, sem conta as vezes,

Queres no rouco som, que o bronze atira,

Incitar-me o furor, mover a ira?

LXVI

Disse; e logo com golpe assaz severo

Os parelhados monstros sacudindo,

Qual valente Sansão, qual ímpio Nero,

Tudo quer de uma vez ir consumindo;

Mas da proa o leão soberbo e fero,

Com rugido feroz a boca abrindo,

Já depois da ruína estar disposta,

O naufrágio detém nesta resposta.

LXVII

Não hás de, não, vencer, cruel Netuno,

Por ser este baixel forte, e guerreiro,

Em que com grandes forças me reúno

Da Esposa de outro Jove verdadeiro.

Se tu és de Plutão soberbo aluno,

Eu de Vênus melhor sou companheiro.

Quem impede, e demora esta desgraça

É outra fonte santa, e mar de graça.

LXVIII

Esta mesma sumaca representa

(Se é justa tão distinta semelhança)

Aquela nau do mar de culpa exempta,

Onde sempre há maré, sempre há bonança,

Na qual o pecador sem mais tormenta,

Atravessando o Cabo da Esperança,

Ao porto salva as praias do Oriente,

Donde se adora o sol mais refulgente.

LXIX

O Leão de Judá eu represento

Da raiz de Davi planta diversa,

Que alcançou glorioso vencimento

Do Cérbero infiel, cobra perversa.

Lê neste escudo, que nas mãos sustento

Ao teu cego furor empresa adversa,

E verás no rigor desta porfia

Quantas penas te dá — Ave Maria!

LXX

Inda o nome não é bem proferido,

Quando toda cruel turba nadante,

Pelas águas fazendo atroz ruído,

Mergulhada se vê no mesmo instante.

Qual de noite no céu lume incendido

Se figura uma estrela assaz brilhante,

E quando mais constante nos parece,

Correndo pelo ar desaparece.

LXXI

Enfim os falsos deuses do mar fundo

Levam a confusão por desengano,

E ainda temerosos no profundo

Se escondem junto ao reino de Sumano.

Enterradosna areia, e lodo imundo,

Fogem de ouvir o nome soberano,

Inda não satisfeitos de escondidos

Metem rolhas de limo nos ouvidos.

LXXII

A gente admirada em terra salta

Entoando com glória não pequena

Os louvores da Virgem em voz alta;

Pois tantas tempestades lhe serena:

E quando de Maria a glória exalta

Também confessa humilde a sua pena;

Porque sem contrição tão manifesta

Não vale a devoção, a fé não presta.

LXXIII

A escabrosa penha vai subindo

Descalça, de joelhos, e de bruços,

E por toda a ladeira estão se ouvindo

Menos a voz, que o eco dos soluços.

As águas, que dos olhos vêm saindo,

Causam nas ventas úmidos defluxos,

E parece que têm já convertidos

Os corações em forma de gemidos.

LXXIV

Chegando finalmente ao santo erário,

Em que o maior tesouro se venera,

Com incendido amor, afeto vário,

Impaciente já a dita espera.

Aqui deter a musa é necessário,

Enquanto em breve espaço se pondera

O como se transforma com Maria

A pena em glória, o pranto em alegria.

LXXV

Nos braços de um varão religioso

Da mesma santa ordem dos menores

Vai o sagrado nume portentoso

Mostrando claramente resplendores.

Em alas o congresso numeroso

Repete vários hinos e louvores,

A cuja voz responde o bronze forte,

Causando à vida horror, espanto à morte.

LXXVI

Assim torna-se a cidade nadadora

Incendida Cartago e Tróia ardente;

E já vendo embarcada a bela aurora

A Vitória procura ter patente.

De Vila Velha a gente aflita chora

Desta santa partida descontente,

Não podendo julgar-se na verdade,

Se é mais ativa a glória, se a saudade.

LXXVII

A capitânia toma a dianteira,

E se observa nas ondas prateadas,

Que os peixes vão seguindo a sua esteira,

Que as aves pelas vergas vão sentadas.

As mais da mesma sorte que a primeira

Dos contínuos prodígios admiradas,

Em companhia vão deste portento,

Tão cheias de prazer, como de vento.

LXXVIII

Antes que à vila as proas apareçam,

A vinda certificam os clamores;

E atroando os ouvidos já começam

Sinos, trombetas, tiros, e tambores.

Para o comprido cais logo se apressam

Juízes, escrivães, vereadores,

Bandeiras e pendões, cruzes e guias,

Ordens, religiões, e confrarias.

LXXIX

O batalhão em forma está disposto,

A tropa auxiliar também formada,

A turba universal com geral gosto,

Em tão vasto terreno está coalhada.

Curvado o velho vem no duro encosto,

O tenro filho em braços da criada,

Ou por si, ou por outro carregado,

O cego, o surdo, o manco, o aleijado.

LXXX

O lavrador as canas desampara,

O pastor já no campo não reclina,

Pela vila o rebanho já despreza

Esquecido da selva, e da campina.

A anta, o bugio, o tigre, a cobra avara

Vêm do bosque adorar a luz divina;

E inda o mesmo gentio sem fé certa

Com a vista parada, a boca aberta.

LXXXI

Das columbrinas peças carregadas

Em fogo se desfaz a fortaleza:

As casas sobre o cais bem preparadas

Mostram na mesma pompa a sutileza.

Nas ruas para o passo destinadas

Se admira com arte igual riqueza,

Observando-se aqui com maior soma

Grandezas de Paris, faustos de Roma.

LXXXII

Chega a Senhora à terra, e recebida

Em rico pálio de ouro traspassado,

Da turba acompanhada é conduzida

À Santa casa de Francisco amado;

Inda não bem no templo é recolhida,

Já todo o céu de nuvens carregado,

Encobrindo do sol a formosura,

Transforma o claro dia em noite escura.

LXXXIII

Apenas entra a Virgem, quando os ares

As nuvens vomitando sobre a terra,

Parece com dilúvio, que nos mares

Quer a água vingar do fogo a guerra.

Os verdes papagaios nos pomares,

Os barbados bugios, pela serra,

E nos charcos as rãs cheias de glória,

Estão cantando os vivas da vitória.

LXXXIV

A sequiosa terra a chuva bebe;

Em uma raridade a gente espanta;

Porque de cada pingo, que recebe,

Um pequeno sapinho se alevanta.

Também ao longe um fumo se percebe,

Que sutilmente aos ares se adianta,

Qual tição apagado de água fria,

Que agora fuma só, se antes ardia.

LXXXV

Os secos algodões reverdecendo,

Os queimados legumes se inundando,

No campo a murcha relva renascendo,

No bosque as mortas árvores brotando,

Na fonte os animais juntos bebendo,

No rio os brutos todos se lavando,

São mudos oradores desta Penha,

Padroeira, que a Deus por nós se empenha.

LXXXVI

O mesmo efeito faz na horrenda peste,

Defendendo qualquer do ar impuro;

Porque, sendo também porta celeste,

Por ela todo o mal vive seguro.

Se de lua se calça e sol se veste,

E das estrelas tem resplendor puro,

Que muito é seja um astro tão perfeito,

Sendo causa da luz, da graça efeito.

LXXXVII

Depois de seu devoto novenário,

Em que as graças se dão do benefício,

Sempre sendo atual no povo vário

Do canto a voz, do culto o exercício,

Tornando-se a aprestar o necessário

Inda com maior pompa, e desperdício

Da Penha se conduz a maravilha,

Essa mais pura luz, que eterna brilha.

LXXXVIII

Nesta ausência cruel da soberana

Chega a pena da glória precursora,

Sendo aquela pensão da vida humana,

Que por um olho ri, por outro chora,

Ao mar arroja a gente a dor tirana,

Que intenta em vão seguir a bela aurora;

Pois todo aquele amor, que não é pouco,

Além de cego ser também é louco.

LXXXIX

Chega até onde o passo a onda impede,

E já precisa astúcia contrafeita;

Triste para as moradas retrocede

Com a fartura em parte satisfeita,

Quando mastiga o pão, e farta a sede,

De sua autora a graça inda respeita,

Celebrando com júbilo dobrado

Neste presente bem o mal passado.

XC

Porém o deus das ondas que vencido

Foi defero leão da proa ardente,

Inda do seu agravo ressentido,

Lhe prepara outro mal mais veemente;

E vendo o seu poder enfraquecido,

Maior esforço busca onipotente,

Com que deste lugar americano

Destrua a devoção, fomente o dano.

XCI

Vai do negro Plutão ao reino escuro,

E já do rei soberbo na presença

Com espantosa voz, com eco duro,

Desta sorte lhe fala sem detença:

Sabe, querido irmão, que em ti procuro

O desagravo de uma grande ofensa;

Pois vejo o meu tridente enfraquecido,

Que ontem foi vencedor, e hoje vencido.

XCII

Profanados meus úmidos altares

Na parte ocidental do novo mundo;

Com acesos metais queimam-se os mares

Em louvor de outro deus forte e jucundo,

Se tu com teu poder me não vingares

Me envergonho, me abismo, e me confundo,

De que uns cegos mortais, tristes humanos,

Causem terror aos deuses soberanos.

XCIII

Isto disse chorando de raivoso,

E os limosos cabelos arrancando,

Foi aos pés do rei ímpio, e rigoroso

A coroa e tridente arremessando,

Cuja vista o concurso numeroso

Dos infernais ministros admirando,

Esquecidos do próprio ministério,

Dão às almas alívio, e refrigério.

XCIV

Plutão depois de um pouco estar parado

Desta sorte responde ao nume aflito:

Eu sei que desse Deus tão venerado

É tão grande o poder, como infinito;

Sei também, nesse clima, que adorado

É com glória infiel, com santo rito

Dos Lusos, que até ali — com sacro indulto

Dos naturais me tem tirado o culto.

XCV

Porém, consola o céu os desumanos,

Torna contente aos reinos cristalinos,

Que para réus vingar de tantos danos

Bastam só nossos bárbaros calvinos,

Os Assírios, Ingleses, Mauritanos,

Numídios, Luteranos, e Rabinos:

Temos para tão poucos inimigos

Imensos parciais, muitos amigos.

XCVI

Com ingente valor, com golpe fero

Eu deles sou vencido muitas vezes,

E cada vez com mais furor espero

Tirar a fé dos cultos portugueses.

Em teu e meu favor agora quero

Contra eles mover os holandeses,

E que os hão de vencer eu te seguro

Com Megera, Caronte, e Palinuro.

XCVII

Prostrar-se agradecido o nume intenta;

Porém o irmão nos braços o levanta;

Este no ardente seio se aposenta,

Aquele ao mar salgado se adianta.

O congresso, que as almas atormenta,

De breu e enxofre faz fumaça tanta,

Que ali se vêem os tristes condenados

Primeiro que incendidos afogados.

XCVIII

Já o reino leteu na escura barca

Sulcar o rei ousado determina:

Do preciso se apresta, e nela embarca

Qualquer que para a empresa se destina.

Também não quer ficar horrenda parca,

Que já faz na ambição certa ruína,

E nela vem causando horror eterno

O vil barqueiro do medonho averno.

XCIX

Apenas de Netuno as águas pisam,

Quando muito contente lhe aparece,

E enquanto céu, e ondas só divisam,

Nunca do longo mar desaparece;

Do melhor mantimento não precisam,

Porque Glauco o bom peixe lhe oferece;

E em pouco tempo Eolo furibundo

No país holandês lhe faz dar fundo.

C

Busca Megera a praia, e certifica,

Que do negro Plutão traz embaixada.

O sucesso do deus nadante explica.

E para o socorrer implora a armada.

A nação infiel nada replica,

E embarcando a tropa exercitada,

Com cego horror, com louco desvario

Quer que na prontidão se veja o brio.

CI

Nos braços já Netuno as mãos aperta,

E por sinal das suas alegrias

Amante e liberal lhe faz oferta

Dos brilhantes cristais das ondas frias.

Já fazendo da empresa a glória certa

As sereias lhe cantam sinfonias,

E fazendo no mar várias mudanças,

As filhas de Nereu lhe formam danças.

CII

Caronte do velame tem cuidado;

Palinuro do leme se apodera;

Cloto quer destruir o luso estado;

Incita cruel ódio só Megera.

Chegam da altura ao porto desejado,

E não achando a terra, que se espera,

Dizem que o bem já não lhes corresponde;

Que, se o mar o não tem, o céu o esconde.

CIII

Misteriosa névoa se oferece

À vista tão cerrada, e tão escura,

Que inda nas mesmas naus não aparece

De popa a proa a gente insana e dura.

Começa a confusão, o susto cresce;

Porque quando o piloto entrar procura,

Temem os deuses maus pelo seu vício

Dobrado mal, segundo precipício.

CIV

O vencido Netuno exasperado,

De furor escumando, inchado em ira,

A cabeça batendo em um costado,

Contra os mesmos amigos se conspira;

Porém depois já menos perturbado,

Com um medonho ai triste respira,

E suspirando aflito a voz exala,

Com que o fero pesar por ele fala.

CV

Oh tu meu nobre irmão, pai da desgraça,

É possível que em tão penoso assédio

Esta tirana dor, que por mim passa,

Não possa cura achar, nem ter remédio,

Que sempre se confunda, e se desfaça

Meu soberbo furor, meu feroz tédio?

E há de o meu valor, minha presença

Sofrer a minha injúria, e vossa ofensa?

CVI

Mais quisera dizer, se de um ruído

O estrondoso horror, que o ar feria,

Lhe não pusera embargos ao sentido

Das queixas, que formava, e que dizia.

Um carro vê de chamas incendido,

Que o mesmo ardente inferno parecia,

E não se engana, pois do dito horrendo

Ouve a funesta voz ao som tremendo.

CVII

Aqui me tens, Netuno, é cousa fera,

Que só força, e não mente em ti se veja,

Pois não sabes prever, que nesta era

Mais uma astúcia, que o valor peleja?

Queres ver como o bem se recupera

Do perdido país, que se deseja?

Acende as velas com meu fogo impuro,

E verás como vês em tanto escuro.

CVIII

Disse; e logo de chamas veementes

Toda a armada acendeu em breve instante,

Fazendo a vista crer, que as naus ardentes

Pretende abrasar o pego undante.

O ar com fogos tão resplandecentes

Jamais do que por Febo está brilhante;

O mar aceso, a terra iluminada

Dá caminho ao furor, concede a entrada.

CIX

À vista do edifício suntuoso

A nação infiel medrosa fica;

Mas de soberba o monstro rigoroso

Que castelo não é lhe certifica.

Rompendo as quilhas vem o mar undoso;

Já cada um no seu lugar se aplica;

Afiando se vê Cloto a tesoura;

Nos ímpios corações Megera estoura.

CX

O espanto natural bem represente

Do mais fero valor sombra ofuscada;

De um a outro lugar conduz a gente

De susto não pequeno traspassada.

E já onde o pavor tréguas consente

Com tanta pressa mal fortificada.

Mais confia vencer o herege insano

Por divino favor, que esforço humano.

CXI

Aqui chega a nefanda companhia;

E o vermelho estandarte levantando,

Campos, bosques, e montes desafia,

Bombas, peças, e balas disparando.

Anda o negro Plutão nesta porfia

Os reforçados bronzes atirando;

E girando se vê por toda a parte

A Belona[ cruel, o feroz Marte.

CXII

Porém, essa pequena cidadela,

Que milagrosa praça se afigura,

Com pouca força as naus muito atropela

Mediante o favor da Virgem pura.

Teme o fero holandês chegando a ela

No mesmo arrojo achar a sepultura,

E das fúrias cruéis deixando a ira,

Infiel, e medroso se retira.

CXIII

Netuno contra ele se enfurece,

Querendo assim vingar a sua injúria;

Já com gesto cruel nele aparece

De Tisífone o rigor, de Aleto a fúria.

Como desenganado do interesse,

Sua pompa mudar quer em penúria,

Condição, que com muitos se coaduna,

Que amigos são do tempo da fortuna.

CXIV

Já dos numes cruéis desamparado

Não há quem dos insultos o defenda,

E da terra inimiga precisado,

A busca por auxílio da contenda.

Só da cega ambição acompanhado

Se vale da sagrada, e rica tenda

Da mais forte Judite, bela senhora,

Do rei dos reis fiel mantenedora.

CXV

Confuso o povo, atento, e admirado

De ver tantos prodígios singulares;

Crendo milagre feito, e bem obrado,

Multiplica os incensos nos altares.

Não podendo o prazer estar encerrado

Passa do peito à voz, da voz aos ares,

E por nobre brasão, e santa glória

A vila toma o nome de Vitória.

CXVI

Mas o holandês sacrílego, e desumano,

Com duro peito, e ânimo ferino,

Rouba as prendas do templo soberano,

E da Senhora o erário diamantino;

E a tanto chega o seu rigor insano,

Que lhe rouba também o deus Menino.

Só não pôde por mais que a força empenha

Movê-la do altar da sacra Penha.

CXVII

Já carregado assim do melhor velo

Se embarca sem o mínimo intervalo.

Netuno cessa logo de ofendê-lo;

E nem jamais se atreve a procurá-lo.

Com favorável vento, e tempo belo,

Nunca encontrou no mar melhor regalo,

Mostrando Deus, que deve um ofendido

Fazer bem té ao mal agradecido.

CXVIII

Oferece o menino onipotente

A cidade de Olinda majestosa,

Nome não sem mistério competente

Ao encarnado botão da pura rosa.

Ali é festejado anualmente

Com fiel devoção, pompa lustrosa,

No mesmo dia, em que da sua planta,

A Penha nos louvores se quebranta.

CXIX

É este um dedicado à clara lua

Depois do outro sol, que Abe se chama,

No qual quase compete à glória sua,

A pura devoção, que amor inflama.

A gente principal, plebe comua

Pela espaçosa penha se derrama,

E onde ela permite algum assento,

Faz soberbo casal, nobre aposento.

CXX

De noite não faz falta o claro Apolo,

Porque mais que de estrelas guarnecida

Toda a esfera se vê, e todo o pólo,

Multiplicada a luz, chama incendida.

As fogueiras não pode o rijo Eolo

Apagar quando a chama mais crescida

Faz crer que todo o monte é certamente

Vesúvio material, ou Etna ardente.

CXXI

De dia já das aves a alvorada

Acompanham sonoros instrumentos,

E ouvindo as flores voz tão concertada

Formam, dançando, alegres movimentos.

Há discreto sermão, missa cantada;

Admiram-se os ricos ornamentos.

Por milagre na igreja se acomoda

A grande multidão da gente toda.

CXXII

Universal banquete se oferece

Sem se escolher sujeito nem estado:

Quanto mais se consome, então mais cresce

Sempre com cópia igual multiplicado.

No vário, e no primor a fama cesse

Do Assírio, com pompa celebrada;

Pois quanto em meses seis aquele teve,

Tudo neste se vê em tempo breve.

CXXIII

Os de saúde assaz destituídos,

Os surdos, indigentes, tristes cegos,

Os que por vários casos vêm perdidos

Pedir-lhe os bens, as honras, os empregos,

Neste dia inda são mais atendidos,

E recuperam logo os seus sossegos,

Que é timbre natural dos soberanos

Aumentar as mercês, quando faz anos.

CXXIV

Se tudo quanto faz esta Senhora

A todo este Brasil, que tanto ampara,

Com delicada pena, e voz canora

Eu agora escrevera, ou publicara,

Inda que outro Tifeu gigante fora;

E nelas só meus dias ocupara,

Com bocas cinqüenta eu não dizia,

Nem com um cento de mãos tudo escrevia.

CXXV

Se enfim desta melhor ave sem pena,

Que é de Deus criadora, e criatura,

Não pode humana voz, rouca camena,

Os mistérios cantar com mais doçura.

Basta o que tem narrado a rude avena

Para se distinguir sua luz pura,

Porque, quando não há quadro bastante,

Pinta-se um dedo só, vê-se um gigante.

CXXVI

E vós, qualquer que sois dela devoto,

Todos que a venerais com mais cuidado,

Nunca vos esqueçais do sacro voto,

Lembrai-vos de pedir com santo agrado.

Vereis, como é vencida a horrenda Cloto,

Vereis, como libertos do pecado,

Com júbilo, e com glória vos convida

Da vida temporal a eterna vida…

Registro do Portal Don Oleari:

Transcrito do livro “As Maravilhas da Penha” ou “Lendas e História da Santa e do Virtuoso Frei Pedro de Palácios”, do Major J. J. Gomes da Silva Neto, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1888, p. 184-221.

Foi atualizada a ortografia e feito um mínimo de alterações ditadas pela lógica contextual, para o que contribuiu um cotejo crítico com a edição do Padre Ponciano dos Santos Stenzel, intitulada “Poema Mariano” sobre a Penha do Espírito Santo, publicada em Vitória, 1934)

Convento

https://conventodapenha.org.br/

https://estacaocapixaba.com.br/padre-ponciano-dos-santos-stenzel/

Kleber Frizzera: Uma velha senhora | 27/1

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Don Oleari - Editor Chefão

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Radialista, Jornalista, Publicitário.
Don Oleari Corporeitcham

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