Joana D’Arc
COLUNA AQUI WILSON COÊLHO
Para os que crêem que o enredo é um mero pretexto para a abordagem de determinados temas sociais e existenciais, o romance “A vida fabulosa de Joana d’Arc”, de Patrícia Deps, é um exemplo vivo desse exercício ficcional, onde a fantasia e a realidade são companheiras da mesma viagem.
Para além da história oficial sobre Joana d’Arc, desde a igreja até o estado, bem como os livros “Joana d’Arc: A surpreendente história da heroína que comandou o exército“, de Helen Castor, “Joana d’Arc“, de Mark Twain, “Joana d’Arc e suas batalhas“, de Phil Robins, e tantos outros, ainda os filmes “A paixão de Joana d’Arc”, de Carl Theodor Dreyer, “O processo de Joana d’Arc”, de Robert Bresson, “Joana na fogueira”, de Roberto Rossellini e “Santa Joana”, de Otto Preminger, soa atrevido assinar uma nova narrativa. Não que a arte não possa assumir esse desafio, mas se supõe uma grande e atrevida empreitada.
Parece ser esse o espírito de Patrícia Deps na obra “A vida fabulosa de Joana d’Arc” que, no próprio título, introduz a categoria de fábula, na medida em que abre os microfones para que o discurso antropomórfico se realize na fala silenciosa dos ossos de Joana d’Arc. Tudo isso se dá num jogo muito simples quando a história de Joana d’Arc, narrada a partir de uma equipe de pesquisadores, tendo em mãos uma carta do padre Charles de Vries sobre a fuga da heroína francesa da Torre de Rouen no dia de sua execução, coloca em questão a história que até hoje nos foi contada.
Os personagens protagonistas da história, através de uma pesquisa científica, tendo como instrumento relatos históricos verdadeiros e fictícios, além de análise dos restos mortais de Joana d’Arc, desenvolvem a trama. E, mesmo sustentados pela paleopatologia moderna, esses personagens não abrem mão de um olhar atento para a idade média e todas as contradições desse contexto.
Assim, o romance é uma porta aberta, um limiar invisível que possibilita um diálogo dos dias atuais com a idade média, desde os conceitos de ciência, medicina e história, até as questões políticas, passando pelos direitos da mulher, o entendimento do que é a família e as relações entre pobres e poderosos.
Como metodologia – em “A vida fabulosa de Joana d’Arc” – diante de uma encruzilhada onde transitam personagens traçando seus destinos, não como uma ideia premeditada de onde chegar, mas atentos aos caminhos em que pisam, onde os pés são determinantes para que a mente trace seus itinerários. Uma relação de causa e efeito, não a partir do método dedutivo do silogismo aristotélico que é usado para testar hipóteses já existentes, chamadas de axiomas, para assim, provar teorias, denominadas de teoremas, onde tudo se realiza para se confirmar a premissa maior.
Em “A vida fabulosa de Joana d’Arc”, a autora se utiliza do raciocínio indutivo, ou seja, o que tem o intuito de chegar a uma conclusão tendo como ponto de partida a observação para, daí, elaborar uma teoria, onde a indução acrescenta informações novas nas premissas que foram dadas anteriormente.
Numa perspectiva estética ou artística, na obra de Patrícia Deps, estamos diante de Mallarmé em “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”, quando coloca o branco da página como discurso, além da semiótica de Roland Barthes, definindo o denotativo como a percepção simples e superficial e, o conotativo, com um sistema de códigos e natureza simbólica e cultural, sem esquecermos da poética de Augusto dos Anjos que utilizou termos científicos de forma consciente e capaz de transmutá-los para a expressão lírica.
No mais, em “A vida fabulosa de Joana d’Arc”, de Patrícia Deps, é uma espécie de afirmação de que o entretenimento da arte é colocar o mundo em questão e criar significados, um dedo na ferida da suposta história absoluta contada pelos vencedores, colocando em cheque a própria ciência, não como um negacionismo, mas afirmando a dialética de um mundo que não pode ser entendido como constituído e, sim, num movimento permanente de constituição, onde a verdade é dinâmica e passível de olhares transversais, principalmente através da arte cujo maior compromisso é colocar a cultura, aquilo que estamos acostumados a cultuar, no melhor dos sentidos, como uma contracultura.
(*) Wilson Coêlho – Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor com 25 livros publicados. Licenciado e bacharel em Filosofia e Mestre em Estudos Literários pela UFES; Doutor em Literatura pela Universidade Federal Fluminense e Auditor Real do Collége de Pataphysique de Paris. Tem 23 espetáculos montados com o Grupo Tarahumaras de Teatro, com participação em festivais e seminários de teatro no país e no exterior, como Espanha, Chile, Argentina, França e Cuba, ministrando palestras e oficinas. Também tem participado como jurado em concursos literários e festivais de música.