Memórias
W.G.Sebald, em seu livro Vertigem, descreve que Stendhal, Henri Beyle, que na mocidade tinha acompanhado, em 1800, a heroica travessia dos Alpes, pelo exército de Bonaparte, quando aos 53 anos, registra as lembranças particularmente vividas naquela época, na chegada à Ivrea, tem que admitir, decepcionado, “ que a imagem que trazia de memória, da cidade a cair da tarde, não era outra senão uma cópia de uma gravura de um prospecto”.
Conclui o novelista francês que não se deve comprar nenhuma gravura de vistas e paisagens contempladas em uma viagem, “porque logo ela ocuparia todo o espaço de memória que tivéssemos de algo – pode-se mesmo dizer que ela a destruiria”.
Quando atualmente, somos soterrados com múltiplas imagens e vídeos dos locais que eventualmente conhecemos ou visitamos, nossas memórias e lembranças, destes lugares, não estarão sendo também sendo erodidas, esquecidas e substituídas pelas reproduções digitais, arquivadas em mundos virtuais, que antecipam, informam e prolongam as nossas experiências sensoriais?
Neste caso, de que serviriam as nossas experiências diretas, sensíveis e corporais, da natureza e dos espaços arquitetônicos e urbanos, se são posteriormente apagadas, trocadas pelas representações simuladas nas imagens e narrativas superpostas às nossas memórias pelos inúmeros meios digitais?
Em recente viagem à Itália e França, Roma e Paris, países e cidades que tiveram seus encantos e singularidades, monumentos e vistas, descritas por inúmeras pinturas, filmes e novelas, e divulgadas em todo o mundo, tive esta sensação. O que via, sentia e observava nas minhas caminhadas, já existia previamente registrado, molduras e recortes, superposições e atualidades, impresso na minha carne e espírito, cabendo apenas confirmar os sabores e gostos antecipados nas variadas descrições, músicas e imagens.
O mesmo fato se repetia nas pequenas vilas, que o movimento turístico tinha congelado as suas presenças, em tempos e estéticas anteriores, onde os gostos sensoriais, aguardados e estimulados pelas casas, ruas, comidas, cheiros e ruídos, se desmanchavam, às minhas costas, quando virava o olhar para frente, para serem deixadas registradas nas fotos digitais.
O mesmo acontece em nossos burgos, que a gosto do progresso, da acumulação e do desenvolvimento econômico, apresenta o futuro edifício, a ser vendido, em folhetos, vídeos e simulações gráficas, e anuncia aos compradores suas futuras experiências, antes que a velha casa e seu jardim, já tenha sido demolida. Quase que como não fosse mais necessário a sua edificação material, satisfeitos, gratificados, seus desejos, antecipadamente, capital e consumidores, com os sentidos e prazeres inventados e armazenados nas nuvens digitais.
Bastaria, segundo Sthendal, negar-se a adquirir e acessar estas propostas gravuras e prospectos, para que possamos manter ou recuperar as lembranças canceladas e as memórias interrompidas, para assim recompormos os mundos e os compartilhamentos comuns, ainda deixados reais por momentos?
Ou desfeitos do nosso espaço próprio da guarda dos tempos e recordações felizes, nos entreguemos abatidos, ao poder do olho mágico, e como Winston Smith Winston, aceitarmos a fake felicidade colorida imposta pelo grande irmão.
Kleber Frizzera
Março, 2023
Memórias
Rubens Pontes: O processo da expulsão dos jesuítas no Espírito Santo | um poema de Katia Bento | 25/